Não estava de canudo e canequinha nem fazia bolinha de
sabão, como cantava a melodia de Orlandivo, que os mais jovens por certo nunca
ouviram. Mas estava sentado na calçada. Encostado na parede do restaurante. Não
atrapalhava os que iam passando. Ninguém lhe dava atenção. Era como se não
existisse. Nem ele se preocupava com os transeuntes. Sua atenção concentrava-se
em coisa mais importante. Muito mais importante. Só tinha olhos para a marmita,
que alguma alma caridosa lhe comprara. Ou o próprio restaurante, condoído da
situação, tinha providenciado para atender o seu pedido. Era hora de almoço. Não
é difícil sentir piedade de quem pede o que comer. Desde crianças aprendemos
que a ninguém jamais se nega um prato de comida. Dinheiro não, porque nunca se
sabe no que vai ser gasto. Ainda mais hoje, tempo de crack, essa droga
assassina.
O homem comia com apetite de fazer gosto. A caminho de
outro restaurante por quilo onde, vez por outra, eu almoço, não contive o impulso
de descobrir o que continha a marmita. Olhei justamente na hora em que ele
trincava um bife. Suculento e imenso bife. Uma beleza. Não entendo nada de
carne bovina, mas seria coxão mole ou patinho. Alcatra, quem sabe. Não carne de
terceira, cheia de pelanca e nervo. Devia ser o melhor bife que o restaurante
servia. Uma dádiva dos céus para a sua fome de semanas. Fazia-o sentir-se o ganhador
único de megassena acumulada.
No coração de manteiga derretida a cena me despertou uma
inusitada alegria. Minha atenção se concentrou no bife. Mas um rápido olhar
bastou para descobrir ingredientes variados, que revelavam uma comida, além de
farta, também de qualidade. Sabe-se lá desde quando o homem não saboreava repasto
igual. Rendi graças pelo anônimo samaritano, que não cuidou de economia na hora
de compor a marmita. Ofereceu-a generosa, cheia até às bordas.
Na volta, cruzei de novo com ele. Ocupava agora o meio
da calçada. Desgrenhado, em andrajos, imundo. Um pobre cão magro fazia-lhe
companhia. Na certa, com ele partilhara a lauta refeição. Vi-o ainda longe. Tirei
da carteira um dinheiro, certo de que seria pedido. Mas ele passou por mim
aprumado como um lorde. Era como se sentia depois do feliz repasto. Tinha
saboreado um almoço da nobreza. Como agora se rebaixar a pedir trocados? Outros
não sei, mas aquele, para mim, será um homem
cheio de dignidade. Estende a mão se e quando está faminto.
Pensei: como é bom não sentir fome. Nunca nos detemos
a considerar a ventura que é ter comida na mesa. Todos os dias. Não escutar o
ronco de um estômago que dói de vazio. Pior: contemplar os filhos que imploram
por comida, quando não se tem um naco de pão duro para atendê-los. Nós o máximo
que já sentimos foi apetite. Nunca sequer chegamos perto do que é fome de
verdade.
Algumas guloseimas recusou-nos nossa infância de
meninos pobres; comida, jamais. Recordo meus dez anos em Jales e a atração que despertavam
as balas Dea brilhando envoltas no seu papel dourado. O tubo azul recheado com
uma dúzia de rodelas de chocolate da marca Gardano. Delícias impossíveis, de
sabor apenas imaginado, que contemplávamos pelo vidro do balcão do bar, na
Avenida Alagoas. Hoje até poderíamos comprá-las. Já não se acham à venda em
nenhum balcão.
Dor de doer o estômago nunca sofremos. E não lembramos
de agradecer.