sábado, 20 de abril de 2013

Um dia para o índio - por padre Orivaldo Robles


Nas décadas de 80 e 90 fui, algumas vezes, com uma família amiga ao Mato Grosso, perto do Pará, em férias de poucos dias. A gente aproveitava julho, quando não chovia. De uma feita, não sei por que, viajamos em janeiro. Então descobri a que, naquela região, chamam inverno. Dia sim, outro também, amanhece um céu azul que dá gosto. Quente como tampa de panela. Logo, logo começa a nublar. Pelas duas da tarde, pouco mais, despenca um aguaceiro de não se enxergar um metro à frente. Não demora e o céu limpa de novo. O dia termina num pôr do sol de pintura. Por que viajar para o Mato Grosso nas férias de meio do ano? É que boa parte dos familiares mudou para aquelas lonjuras. O casal, ambos professores, todo ano, levava as crianças a visitar avós e tios. Os de lá e os daqui mostravam prazer em que eu também fosse. Quiçá para fazer lastro no carro. Ou para ajudar a dirigir. Mais de dois mil quilômetros ao volante, sem parar, ninguém merece. Estou brincando. Amigos queridos, eles apreciavam, muito além do que vale, a minha companhia. Na época, depois de Cuiabá a BR 163 era chão puro até Santarém (PA). De tanto em tanto, desvios e máquinas. O solo preparava-se para o asfalto.
Deu-se que na volta de uma dessas viagens, horas depois de muito rodar, paramos naquilo que se esforçava para imitar um posto de combustível. Por felicidade, encontramos gasolina. Ao lado, uma borracharia e um bar. Não era lá grande coisa, mas para nossa goela seca bar queria dizer água gelada, refrigerante ou sorvete.
Quando entrei, medonha figura no canto do balcão me assustou. Senti na espinha um frio de morte. Era só um pobre índio. Eu não imaginava pudesse haver índio daquele tamanho. Um metro e oitenta de ossatura quase exposta. Um gigante para minha noção de índio brasileiro. No rosto, como numa tela suja, marcas de um sofrimento que não tem fim. Um semblante frio, inexpressivo, sem vida. Alheio a tudo, ele fitava o horizonte como buscando uma razão para viver. Eu não sabia se o encarava ou se dele afastava os olhos. Que fazia ali sozinho, descalço, vestido apenas de calção e segurando um arco, aquele espécime dos altivos povos, senhores durante milênios de todas estas terras?
Veio-me, de repente, um estranho impulso de chorar. Não recordo, mas talvez me tenham umedecido os olhos. Que dores e misérias de ninguém sabidas carregava aquele infeliz no corpo ossudo queimado de sol? Lá no fundo do espírito humilhado? Ele e todos os indígenas do Brasil? Para um país que só avalia indicadores econômicos aquele gigante mudo nada significava. Que viera fazer num bar de beira de estrada? Quem sabe, vender suas manufaturas para levar à aldeia alguns míseros tostões. Será que brancos – sempre espertos em zombar de fracos – não o embebedaram e, fartos de se divertirem à sua custa, não sumiram rindo alto e comentando a patuscada de mau gosto?
Na infância, eu conheci um Dia do Pan-americanismo. Dia do Índio, não. Hoje, as crianças voltam da escola com o rosto pintado. Às vezes, com um falso penacho na cabeça. É o que aprendem sobre índios. Para os adultos, índio é atrasado, indolente, traiçoeiro, qualidades propagadas pelos “civilizados”. Ninguém ensina que, por milhares de anos, cuidada pela cultura deles, nossa terra se conservou saudável, produtiva e farta. Bastaram quinhentos anos de uso pelos “civilizados” – que dela se apossaram a força – para atirá-la na devastação que conhecemos.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Casamento e tempo - por padre Orivaldo Robles


“Não podemos esquecer o tempo. Ele também passa pelo corpo que envelhece. A garota que conheci com vinte anos não é a mesma aos setenta. Existem ainda as enfermidades. Mas o mundo atual não quer que vejamos. Todos são jovens, bonitos, sem doenças. Ora, isso é contrário à experiência humana de todos os dias. Na hora da verdade, basta atravessar a rua para ver que a realidade é outra. Isso acontece porque há um materialismo de fundo que destrói o tempo. Porque não há vida interior e relação com Deus. A juventude e a obsessão com o corpo querem estar no mesmo nível que o espiritual. Se o corpo estabelece as regras de vida, tudo muda. A isso se acrescentam as enormes dificuldades econômicas que as famílias enfrentam; os problemas no trabalho, o desemprego, e até mesmo o fato de que o casal chega a casa exausto do trabalho. No final do dia, cada um viveu uma experiência diferente e não é possível compartilhá-la, porque a sociedade não permite. Tudo isso tem um preço, que é pago pela família. É preciso refletir sobre todos esses condicionamentos sociais da vida familiar”.
Quem passou dos setenta endossa as colocações acima, feitas por Georges Cottier, cardeal e teólogo pontifício emérito. É incrível com que brutalidade o tempo impõe ao nosso corpo transformações que, na infância e juventude, sequer em sonho calculávamos que aconteceriam. Até admitíamos que a vida é passageira, que a idade provoca mudanças. Mas não sabíamos, como agora, o que é suportá-las, quando chegam e se instalam.
Considerando como, hoje em dia, as pessoas vivem, eu me pergunto: qual futuro haverá para as famílias? Não sou maniqueu nem alarmista. Mas, pelo que venho observando, só vale o desfrute do momento. Sôfrego, intenso, arrebatador. Total e definitivo, como se o mundo fosse acabar no minuto seguinte. Como se ali residisse a única chance de ser feliz. E que, se for perdida, não voltará a se apresentar.
Ninguém de juízo perfeito ignora o risco de moldar a vida por esse critério. Infelizmente, em nosso meio há verdadeiro pavor de desagradar. De levar a pecha de moralista ou chato. Para não criar caso com quem vive ao seu redor, a maioria se cala. Falta coragem de apontar os riscos a que se expõem as pessoas. Mas está havendo um exagero nas preocupações com a aparência. Parece obrigatório que o corpo se mostre sempre jovem e atraente. Ainda que à força de intervenções e truques que a tecnologia não se cansa de inventar. Há pessoas que vivem unicamente em função de um frescor e de uma beleza do corpo, que creem possíveis de se manterem eternas. Tolice. Somos dependentes do tempo. Cada um lhe paga a obrigatória taxa. Ilude-se, além de fazer papel ridículo, quem se esfalfa para aparentar vinte anos menos. É preciso admitir que nós valemos por aquilo que somos. Pela nossa grandeza interior, não pelo visual bonito. A embalagem pode agradar, mas o produto é que conta.
Construir uma família exige sabedoria. Sem ilusões, que já destruíram muitos sonhos. Os que se encantam com a atração de um corpo jovem precisam ter presente que essa visão não vai durar sempre. Há que fundamentar seu amor em algo bem mais sólido, de consistência muito maior. Numa vida a dois, o tempo é um elemento a considerar, sob pena de fracasso.
Como o de tantos casais, que tristemente se arrastam por aí.

sábado, 6 de abril de 2013

O mais importante bem - por padre Orivaldo Robles


Eventualmente, quando o tempo me permite, acompanho o Jornal do Meio Dia. Esforço-me para não ser muito ignorante sobre o que rola por esse mundão de Deus. E me vejo mais assustado a cada dia. Tenho medo de que nos familiarizemos com brutalidades e safadezas. Que, no fim de algum tempo, venhamos a achar tudo normal. Que nos rendamos ao fatalismo de admitir que hoje o mundo é assim mesmo. Que não adianta lutar contra. Que nada pode ser feito. Boa parte das pessoas parece já concordar com isso.
Neste último dia de março, em Curitiba, uma senhora com três crianças, ao tomar um ônibus articulado da linha Pinheirinho-Praça Rui Barbosa, notou que o veículo tinha fechado a porta e arrancado antes que a terceira menina houvesse embarcado. Desesperada, pediu ao motorista que parasse. Enquanto isso, da janela, gritava à filha que esperasse no ponto até que a mãe voltasse para buscá-la. Vários passageiros se revoltaram com o condutor. Dois rapazes conversaram com o repórter da TV. Um disse que advertiu o motorista, dele obtendo, como resposta: “Ah, que se dane!”. Ao outro ele argumentou que tinha horário a cumprir e estava atrasado. Já fora anteriormente repreendido pelo fiscal da empresa por atender a passageiros. Como o jovem insistisse, freou o coletivo e disse asperamente: “Então venha você mesmo aqui dirigir”. Indignados, os jovens desceram com a mulher na parada seguinte. Postaram queixa na internet. Obtiveram compartilhamento de milhares de internautas.
Os responsáveis pelo transporte coletivo na Capital vieram a público, nas redes sociais, oferecer as explicações de praxe. Falaram que verificarão o caso, que os funcionários têm normas rígidas para tratar o público etc. Quanto à criança, esclareceram que “tem cerca de 10 anos e não 5, como informado anteriormente. Ela ficou junto ao cobrador da estação-tubo, que tomou conta dela durante os 7 minutos que a mãe levou para retornar”. Com isso se restabeleceu a convivência cidadã entre prestadores de serviço e destinatários, que nada mais são que a plebe inculta e pobre, pois não?
Gente, que mundo estamos construindo? Que bem precisamos defender como o mais importante? Será o lucro, o prazer, o prestígio, o luxo, a vantagem sempre crescente de quem manipula os cordéis do mercado? Que relações norteiam nossa vida em sociedade? A cada dia sabemos de novos absurdos. Ainda não diminuiu a dor pelas mortes na boate Kiss, de Santa Maria, e vêm novas mortes na região serrana fluminense, mortes na queda do ônibus da Linha Vermelha, mortes, mortes...
Ah, nossa Curitiba festejada por tantos que gostam de aparências, pelo menos você não nos desiluda. É pena descobri-la tão diferente daquela de 1958. Quando a vi, pela primeira vez, a bordo de um DC3 da Real Aerovias, você se mostrava linda com os raros prédios agrupados no centro e os pinheiros brilhando ao sol da manhã. Cabia-lhe bem o título de Cidade Sorriso. Percebeu como ninguém mais a chama assim?
Não bastam moradores ricos, que se vestem com elegância europeia. Nem eficiente sistema viário, modelo para Brasil e Exterior. Uma cidade é bem mais do que isso. Você se fez lindamente moderna. Mas também se converteu na sexta capital estadual mais violenta do Brasil. Aonde foram parar amor e respeito ao ser humano, bem maior de qualquer cidade? Por suas ruas circulávamos sem medo. Até sorríamos uns para os outros. Por que as coisas não são mais assim?