sábado, 29 de junho de 2013

Por que criança chora? - por padre Orivaldo Robles

Memória de idoso é uma encrenca. Sem mais nem menos, revolve lá no fundo e desentoca coisas que ninguém conhece ou recorda. É o caso do exemplo a seguir. Sem esforço e com assiduidade, me vem à cabeça uma canção encontrada num dos meus velhos LP nos quais, por falta de tempo ou por comodismo, faz séculos que não mexo. Aos menos vividos acho bom esclarecer que LP é abreviatura de “long playing”. Designa um antigo disco, dito de vinil, que talvez tenham visto em figura. Nele eram gravadas normalmente doze melodias. Foi o sucessor do disco de 78 r.p.m. (rotações por minuto). Por causa do tamanho, também este, mas especialmente o outro, recebe hoje o apelido de bolachão. O LP apareceu na fase anterior ao CD, ou “compact disc”. Entendo que para nossos atuais garotos CD também não queira dizer nada. É coisa do tempo do onça.
A melodia a que me refiro começava com as palavras: “Señora Santana, por qué llora el niño? Por una manzana, que se le ha perdido”. Traduzindo: “Senhora Santa Ana, por que o menino está chorando? Por uma maçã que ele perdeu”. Canção de ninar, comum no México e em Cuba, com variantes diversas na letra, ora mais curta, ora mais extensa. Canta-se normalmente no período natalino.
Criança é um serzinho especial, feito de meiguice e mel, que amolece até os corações mais embrutecidos. Não há quem não se enterneça com seu pranto. Não falo da manha ou birra, fáceis de identificar, que mostram esperteza em levar os adultos no bico, quando o interesse é ganhar colo ou satisfação de qualquer desejo. Refiro-me ao pranto genuíno, sentido, que nasce lá no fundo e aflora em lágrimas, aos borbotões, correndo num rostinho marcado pela tristeza. Quem consegue manter-se indiferente a esse quadro? Tenho para mim que o ornato de um rosto infantil haveria que ser o sorriso. Só sorriso permanente e radioso. Estridente feito bica d’água batendo em pedras. Choro de criança é desventura que nunca devia acontecer. É infelicidade no estado puro, confissão da absoluta impotência de escapar das garras de uma dor incompreendida e atroz. Em carinha de criança, lágrima teria que ser anormalidade. Dor teria que ficar reservada para nós, adultos, como castigo para os pecadores que somos. Nunca ferir quem ainda nem descobriu o que é viver. Quem não aprendeu a andar com os próprios pezinhos. Nem é capaz de explicar aquilo que sente.
Por qué llora el niño? Ah, por inúmeras razões. Especialmente niño brasileiro. Chora de fome. De frio. De medo. De solidão e abandono. De doença e dor. De tristeza. De ameaça à própria vida. Da incerteza quanto ao futuro. Do terror que provoca a violência presente em cada esquina...
Ao observar o que, nestes dias, vem acontecendo Brasil afora, a gente sente vontade de questionar: Que ocultas e seculares dores a voz (não rouca, mas muito clara) das ruas está trazendo? Quantas crianças mudas reclamam através dos jovens, que bradam alto em todos os quadrantes do País? Milhões de queixas, engolidas pelos inocentes donos das lágrimas que ninguém secou, vêm agora expressas pelos seus porta-vozes, nas ruas.

Ninguém pode desprezar o clamor que sobe das ruas. Manifestantes gritam com uma força que crianças não têm. Não deve passar em branco a oportunidade que o Brasil inteiro tem de escutá-los. 

sábado, 22 de junho de 2013

Vem pra rua - por padre Orivaldo Robles

Terça-feira passada, dezessete e trinta, mais ou menos. Nariz pingando como torneira que não fecha, eu ia apressado à farmácia do canto da praça. Faz tempo, me deram um cartão da melhor idade. Melhor para quem? Para os laboratórios, com certeza. São os que lucram com nossas doenças. O cartão me dá pequeno desconto. Não posso desprezar; tomo uma batelada de remédios de uso contínuo.
Enquanto caminhava, eu ouvia o alto-falante convocando as pessoas para o início da manifestação. Lamentei a coriza e o mal-estar que sentia. Mais que isso, porém, lamentei não possuir a disposição de 1992, da caminhada pelo impeachment do presidente Collor. Naquela vez, saí às ruas no meio de uma multidão composta, em sua maioria, por adolescentes conhecidos como “caras pintadas”. Pintaram a minha também. Tempo bom. Não há setentão que não recorde com gosto a vida que levava há vinte anos. Desta vez, tomei direto o rumo de casa. Nas ruas, jovens risonhos – de novo, quase todos adolescentes – portavam cartazes pintados à mão. Riam e aprontavam todo o barulho que a hora e o lugar lhes permitiam.
Mais tarde, já em casa, um forte alarido de vozes invadiu minha sala. Que seria? Tentei desligar-me. Não consegui. O barulho não dava sinal de que ia parar. Larguei a nebulização que estava fazendo e me aproximei da janela. Onze andares abaixo, ocupando calçadas e o leito da rua, movia-se uma baita aglomeração de gente. Li, dia seguinte, que dez mil pessoas a compunham. Não sei quem contou. Não disponho de meios para conferir, então tenho que acreditar. Caminhavam ao som de apitos, de assobios, de buzinas dos veículos parados, de instrumentos de percussão e de vozes, que gritavam em comando: “Vem pra rua”! Visto do alto, era um bonito espetáculo. Assim, ao vivo, eu nunca tinha assistido. Permaneci encostado à janela pelo espaço de uma boa meia hora. Até que passaram todos, e os automóveis voltaram a se pôr em movimento.
Qual o motivo da grande manifestação? Não, por certo, só os vinte centavos de aumento na tarifa do transporte urbano. Isso foi a gota d’água. O povo já vinha, desde muito, com insuportável clamor entalado na garganta. Esperava apenas o momento de pôr para fora. Começando pela maior cidade do país, por todos os cantos, explodiu a indignação que, nos anos 80, Ulysses Guimarães chamara de “a voz rouca das ruas”. Rouca podia ser a voz dele, próximo dos 70 anos de idade. A das ruas era límpida e vibrante. Escutei-a sob a minha janela. Adolescentes, jovens e adultos davam, na verdade, um recado a todos os que detêm poder: “Cansamos de ser tratados como um bando de patetas. Basta de políticos corruptos e incompetentes. Parem de esbanjar o nosso dinheiro. De sucatear a Educação, a Saúde, a Infraestrutura, a Segurança, o Transporte... Exigimos um país decente. De vergonha na cara”. Com o ímpeto da idade, uma jovem do Rio de Janeiro depositou no cartaz a sua esperança: “Desculpe o transtorno. Estamos mudando o País”.

Há quem duvide. Quem veja nisso puro fogo de palha aceso por gente que sequer usa ônibus urbano ou trem de subúrbio. Quem sabe em que vai dar? Mas uma caminhada de mil quilômetros – ensina a sabedoria chinesa – começa pelo primeiro passo. Vai saber se não estamos assistindo ao despertar de um novo Brasil? De um Brasil disposto a se erguer do berço esplêndido? Brasil que cansou de ser um gigante deitado? 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Namorados - por padre Orivaldo Robles

Minha cidade, no interior paulista, ostenta na única praça uma estátua de Santo Antônio. Nenhuma novidade. Em Curitiba, na praça da Catedral, há uma estátua de Tiradentes. A da minha cidade foi doada por Durvalino Magrini e inaugurada, nos anos 50, perante um colosso de gente. Um frade franciscano português, convidado para o evento, em seu discurso, várias vezes, falou de Santo Antônio de Lisboa. Deixou-me confuso. O padroeiro do lugar era Santo Antônio de Pádua, único que até ali tinha ouvido. Só mais tarde vim saber que ele era natural de Lisboa. Morrera em Pádua, na Itália, daí a designação pela qual é conhecido. Mas experimente convencer um português a chamá-lo Santo Antônio de Pádua!
Trazida pelos colonizadores, sua devoção tornou-se, no Brasil, tão popular que mudou a data do Dia dos Namorados. Entre nós ninguém o celebra a 14 de fevereiro, dia de São Valentim, como fazem outros países. Dia dos Namorados aqui é 12 de junho, véspera de Santo Antônio. Por causa da sua fama de santo casamenteiro. Lendas variáveis apresentam-no como paladino do amor entre jovens que alimentam o desejo sincero de se casarem. Santo Antônio é o protetor dos namorados.
Se há no Brasil uma palavra que mudou inteiramente de sentido é namoro. O que ela quer dizer, hoje em dia, não recorda em nada o que significou há algum tempo. Pergunte a um jovem o que é “vela”. Ele se lembrará do cilindro de cera com um pavio que se acende para clarear; da peça do motor de combustão que produz fagulha; ainda da grande parte de uma embarcação tocada pelo vento. Conte-lhe que também pode significar pessoa em vigília, observador, sentinela. Ele achará estranho. Estranhará ainda mais se souber que os antigos usavam vela para cuidar do namoro dos filhos. Especialmente das filhas. Pais costumavam deixar o casal de namorados na sala. Mas não inteiramente sós. Escalavam uma criança – a vela – para fazer-lhes companhia. Conheciam a natureza humana. Para evitar possíveis dores de cabeça, levavam a sério a máxima, trazida pelos portugueses, suponho: “O homem é fogo; a mulher, estopa: quando se juntam vem o diabo e sopra”.
Como analisar pais que agiam assim? Eram antiquados? Ignorantes? Prefiro achar que fossem apenas de outra época. Viviam num mundo diferente. Faço uma comparação: Naquele tempo, a maior carroça não aguentava carga superior a 500 quilogramas. Cruzando hoje nossas estradas, uma carreta transporta 32 toneladas. Considerava-se estudado quem tinha concluído o curso primário. Agora, nem pós-doutorado assegura uma qualificação definitiva. O mundo em que vivemos está permanentemente aberto a mudanças e novas descobertas.
O passar dos anos trouxe alteração do sentido de muitas palavras. Não expressam mais a significância original com que foram criadas. Também transformou muitos costumes. Buscando uma tradução fiel, que se entende atualmente por “namorar”? Qual o exato significado que as pessoas dão a palavras como namoro e namorado(a)? E, por consequência, para que serve um Dia dos Namorados? Como celebrá-lo com toda a solenidade possível? Pela propaganda que bombardeia nossa mídia, muita gente não conseguirá pensar em nada diferente de um delicioso jantar a dois, seguido de uma ardente noite de sexo.

Depois há quem reclame que um casamento preparado desse jeito não vai muito longe. E podia?

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O pica-pau - por padre Orivaldo Robles

Numa dessas manhãs, no meio das poucas árvores da Praça da Catedral, ouvi pipilar um pica-pau. Um não; dois. Um piava, outro respondia. Corriam pela grama, alçavam voos curtos, subiam às copas das árvores. Um casal, sem dúvida, em busca de lugar para construir o ninho. Devem ter ido embora decepcionados. Não cresce ali mais nenhuma palmeira decente que mereça o furo do seu afiado bico. Nada parecido com a fartura de que dispunham seus ancestrais. Quem morou na roça recorda os coqueiros no meio do pasto, duros como ferro e altos como prédios. Os pica-paus os martelavam até perfurar um orifício redondo e fundo. Com uma capacidade fabulosa de escutar – ouvem larvas ou insetos movendo-se no interior do tronco – cavam o caminho até sua refeição, além de providenciar a maternidade onde nascerão seus descendentes. Para pôr ovos e criar filhotes, não sei de outro pássaro, tirante o joão-de-barro, capaz de construir uma casa tão segura.
Não sou ornitólogo, menos ainda especialista em pica-pau, mas arrisco pensar que a cada ninhada, ele procura outra árvore para escavar um buraco novo. Vale dizer, a cada temporada de choco, repete o mesmo trabalho. Previdente, por causa do vento e da chuva, rompe a cavidade de baixo para cima. E a coloca no ponto mais alto da árvore para se livrar dos predadores. Após cinco semanas, os filhotes estão em condição de abandonar o ninho. Se nenhum gambá, coruja ou gavião até ali os descobriu, o perigo maior terá passado.
Assim como entre os humanos, também entre os pássaros há os que se aproveitam do esforço alheio. Sem a mesma capacidade do pica-pau, no tempo de incubar, o casal de papagaios tira vantagem do ninho em desuso e nele deposita seus ovos. Não tem noção do perigo a que se expõe. Maus exemplares do bicho homem, que sempre existem, pregam no tronco da árvore ripas de madeira escalando-as, como degraus de escada, para tirar os filhotes. Arrebatados do ninho muito novos, poucos papagainhos conseguem sobreviver. Uma judiação.
Senti dó dos pica-paus da praça. Não faz muitas décadas, ali se estendia uma senhora mata. Um oceano ondulante de verdura e vida. Para onde alguém olhasse o que via era um universo impenetrável, habitat feliz de uma profusão de bichos. Árvores de diversos vigores e alturas ofereciam, a quantos pica-paus houvesse, condição de construir os ninhos que desejassem. Trisavós do casal da Praça da Catedral nadaram numa riqueza que não voltará a repetir-se. Não precisaram, como estes dois, mendigar um escasso tronco onde cavar um oco de quinta classe.
A floresta que cobria tudo por aqui passou às mãos do bicho homem. Civilizado, entenda-se. Que via como progresso a derrubada, o plantio, a colheita e a comercialização do produto. Para fazer dinheiro, comprar terra e, de novo, devastar, plantar, colher, vender e acumular.
Que coisa! Não mais de cem anos de civilização bastaram para secarmos cursos d’água, assorearmos riachos, poluirmos e represarmos rios, deitarmos abaixo a floresta, envenenarmos o solo, anarquizarmos o clima e empestearmos o ar que respiramos. Antes da chegada dos brancos, durante milênios, populações indígenas ocuparam esta terra, fizeram uso correto das suas riquezas e preservaram os seus recursos.

Mas o que civilizados iam aprender com índios, não é? Índio é selvagem; nada entende de progresso.