Numa
dessas manhãs, no meio das poucas árvores da Praça da Catedral, ouvi pipilar um
pica-pau. Um não; dois. Um piava, outro respondia. Corriam pela grama, alçavam
voos curtos, subiam às copas das árvores. Um casal, sem dúvida, em busca de
lugar para construir o ninho. Devem ter ido embora decepcionados. Não cresce
ali mais nenhuma palmeira decente que mereça o furo do seu afiado bico. Nada
parecido com a fartura de que dispunham seus ancestrais. Quem morou na roça
recorda os coqueiros no meio do pasto, duros como ferro e altos como prédios.
Os pica-paus os martelavam até perfurar um orifício redondo e fundo. Com uma
capacidade fabulosa de escutar – ouvem larvas ou insetos movendo-se no interior
do tronco – cavam o caminho até sua refeição, além de providenciar a
maternidade onde nascerão seus descendentes. Para pôr ovos e criar filhotes,
não sei de outro pássaro, tirante o joão-de-barro, capaz de construir uma casa
tão segura.
Não
sou ornitólogo, menos ainda especialista em pica-pau, mas arrisco pensar que a
cada ninhada, ele procura outra árvore para escavar um buraco novo. Vale dizer,
a cada temporada de choco, repete o mesmo trabalho. Previdente, por causa do
vento e da chuva, rompe a cavidade de baixo para cima. E a coloca no ponto mais
alto da árvore para se livrar dos predadores. Após cinco semanas, os filhotes estão
em condição de abandonar o ninho. Se nenhum gambá, coruja ou gavião até ali os
descobriu, o perigo maior terá passado.
Assim
como entre os humanos, também entre os pássaros há os que se aproveitam do
esforço alheio. Sem a mesma capacidade do pica-pau, no tempo de incubar, o
casal de papagaios tira vantagem do ninho em desuso e nele deposita seus
ovos. Não tem noção do perigo a que se expõe.
Maus exemplares do bicho homem, que sempre existem, pregam no tronco da árvore ripas
de madeira escalando-as, como degraus de escada, para tirar os filhotes.
Arrebatados do ninho muito novos, poucos papagainhos conseguem sobreviver. Uma
judiação.
Senti
dó dos pica-paus da praça. Não faz muitas décadas, ali se estendia uma senhora
mata. Um oceano ondulante de verdura e vida. Para onde alguém olhasse o que via
era um universo impenetrável, habitat feliz de uma profusão de bichos. Árvores
de diversos vigores e alturas ofereciam, a quantos pica-paus houvesse, condição
de construir os ninhos que desejassem. Trisavós do casal da Praça da Catedral
nadaram numa riqueza que não voltará a repetir-se. Não precisaram, como estes
dois, mendigar um escasso tronco onde cavar um oco de quinta classe.
A
floresta que cobria tudo por aqui passou às mãos do bicho homem. Civilizado,
entenda-se. Que via como progresso a derrubada, o plantio, a colheita e a comercialização
do produto. Para fazer dinheiro, comprar terra e, de novo, devastar, plantar,
colher, vender e acumular.
Que
coisa! Não mais de cem anos de civilização bastaram para secarmos cursos d’água,
assorearmos riachos, poluirmos e represarmos rios, deitarmos abaixo a floresta,
envenenarmos o solo, anarquizarmos o clima e empestearmos o ar que respiramos.
Antes da chegada dos brancos, durante milênios, populações indígenas ocuparam
esta terra, fizeram uso correto das suas riquezas e preservaram os seus recursos.
Mas
o que civilizados iam aprender com índios, não é? Índio é selvagem; nada
entende de progresso.
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