sábado, 28 de julho de 2012

Sentado na calçada - por padre Orivaldo Robles


Não estava de canudo e canequinha nem fazia bolinha de sabão, como cantava a melodia de Orlandivo, que os mais jovens por certo nunca ouviram. Mas estava sentado na calçada. Encostado na parede do restaurante. Não atrapalhava os que iam passando. Ninguém lhe dava atenção. Era como se não existisse. Nem ele se preocupava com os transeuntes. Sua atenção concentrava-se em coisa mais importante. Muito mais importante. Só tinha olhos para a marmita, que alguma alma caridosa lhe comprara. Ou o próprio restaurante, condoído da situação, tinha providenciado para atender o seu pedido. Era hora de almoço. Não é difícil sentir piedade de quem pede o que comer. Desde crianças aprendemos que a ninguém jamais se nega um prato de comida. Dinheiro não, porque nunca se sabe no que vai ser gasto. Ainda mais hoje, tempo de crack, essa droga assassina.
O homem comia com apetite de fazer gosto. A caminho de outro restaurante por quilo onde, vez por outra, eu almoço, não contive o impulso de descobrir o que continha a marmita. Olhei justamente na hora em que ele trincava um bife. Suculento e imenso bife. Uma beleza. Não entendo nada de carne bovina, mas seria coxão mole ou patinho. Alcatra, quem sabe. Não carne de terceira, cheia de pelanca e nervo. Devia ser o melhor bife que o restaurante servia. Uma dádiva dos céus para a sua fome de semanas. Fazia-o sentir-se o ganhador único de megassena acumulada.
No coração de manteiga derretida a cena me despertou uma inusitada alegria. Minha atenção se concentrou no bife. Mas um rápido olhar bastou para descobrir ingredientes variados, que revelavam uma comida, além de farta, também de qualidade. Sabe-se lá desde quando o homem não saboreava repasto igual. Rendi graças pelo anônimo samaritano, que não cuidou de economia na hora de compor a marmita. Ofereceu-a generosa, cheia até às bordas.
Na volta, cruzei de novo com ele. Ocupava agora o meio da calçada. Desgrenhado, em andrajos, imundo. Um pobre cão magro fazia-lhe companhia. Na certa, com ele partilhara a lauta refeição. Vi-o ainda longe. Tirei da carteira um dinheiro, certo de que seria pedido. Mas ele passou por mim aprumado como um lorde. Era como se sentia depois do feliz repasto. Tinha saboreado um almoço da nobreza. Como agora se rebaixar a pedir trocados? Outros não sei, mas aquele, para mim, será um homem cheio de dignidade. Estende a mão se e quando está faminto.
Pensei: como é bom não sentir fome. Nunca nos detemos a considerar a ventura que é ter comida na mesa. Todos os dias. Não escutar o ronco de um estômago que dói de vazio. Pior: contemplar os filhos que imploram por comida, quando não se tem um naco de pão duro para atendê-los. Nós o máximo que já sentimos foi apetite. Nunca sequer chegamos perto do que é fome de verdade.
Algumas guloseimas recusou-nos nossa infância de meninos pobres; comida, jamais. Recordo meus dez anos em Jales e a atração que despertavam as balas Dea brilhando envoltas no seu papel dourado. O tubo azul recheado com uma dúzia de rodelas de chocolate da marca Gardano. Delícias impossíveis, de sabor apenas imaginado, que contemplávamos pelo vidro do balcão do bar, na Avenida Alagoas. Hoje até poderíamos comprá-las. Já não se acham à venda em nenhum balcão.
Dor de doer o estômago nunca sofremos. E não lembramos de agradecer.

sábado, 21 de julho de 2012

Homens que marcam - por padre Orivaldo Robles


Sete anos se passaram. Os jornais falam de outro homem de Igreja falecido. Do primeiro Arnaldo Jabor compôs comovida crônica, que ainda me umedece os olhos quando a releio. Tenho coração mole. Choro até em comercial de detergente, já falei. Jabor lembrou que “de mortuis nihil nisi bonum”. Para quem não sabe latim ele traduziu por “não se fala mal de morto”. Tradução exata, porém livre. Professores sempre me exigiram tradução literal. Então, “a respeito dos mortos nada, senão o bem”. Jabor exaltou o falecido de uma forma inesperada, brilhante. Ele maneja as palavras com a facilidade de um menino brincando. O extinto revestia singular carisma. Impossível ocultar o burburinho que causava ao seu redor. Em 2005, Jabor falou de João Paulo 2°. Agora, Carlos Heitor Cony fala do cardeal do Rio, dom Eugênio Sales. Ambos, já parte da História. Seu valor transcende o tempo que passaram entre nós. Extravasaram a notícia, que hoje se comenta, amanhã se esquece.
Foram diferentes entre si. Um, transparente a todas as mídias. Outro, ignorado até pelos vizinhos. Os dois, agora louvados em público, nas páginas dos maiores jornais do país. Não por católicos piedosos, mas por “adversários”. Pelo ateu Jabor. Pelo agnóstico Cony.
Jabor achava o papa mais inútil que barão do Império. Após sua morte, admitiu: “Devo confessar que nunca gostei desse papa (...). Ontem, vendo os milhões chorando pelo mundo, vendo a praça cheia, entendi de repente sua obra, sua imensa importância (...). Emocionado, senti minha intensíssima solidão de ateu (...). Sou ateu, sozinho, condenado a não ter fé, mas vi que, se há alguma coisa de que precisamos hoje, é de uma nova ética, de um pensamento transcendental, de uma espiritualidade perdida. João Paulo na verdade deu um show de bola”.
Dom Eugênio foi alvo de apreciações ácidas; muitas, injustas. Discreto, jamais respondeu. Agora, não tem como se defender. Creio no depoimento de quem dele recebeu proteção na ditadura militar. Cony penou nos calabouços do regime e por ele foi socorrido. Não se constrange em declarar: “Se fosse muçulmano, umbandista, técnico de futebol, comunista ou lixeiro, dom Eugênio Sales seria o que sempre foi: um homem reto, sincero, fiel a seus princípios e, sobretudo, humano. Acontece que foi sacerdote, bispo e cardeal. Sua trajetória tinha um ponto de referência lá em cima – no caso dele, o Deus no qual acreditava e a Igreja à qual servia em tempo integral e em modo total. (...) Conservador, sim, e mais do que isso: coerente e sincero com sua forma de pensar e agir no mundo. O pessoal de certa esquerda o criticava porque não bajulava causas e doutrinas que entravam em moda. Ele fizera sua opção básica por uma religião estruturada, multissecular (...). Protegeu perseguidos políticos daqui e de fora, com uma firmeza que desarmava os militares. Eu próprio, em certa época, fui rastreado por ele e por dois de seus auxiliares, dom Eduardo e dom Rafael. Em alguns momentos de perigo que atravessei, ia dormir na casa de dom Eugênio (...)”.
Jabor e Cony revelam uma carência de que hoje padecemos. De homens que, mesmo em suas fraquezas, sejam marcos a nos apontar o Infinito. Que não se ajustem ao cambiante gosto da maioria. Nem fujam das críticas para surfar na ágil onda do sucesso. Que deixem claro de que lado estão.  

sábado, 14 de julho de 2012

Nossas origens - por padre Orivaldo Robles


Em todas as edições o vestibular traz à nossa cidade um bando de jovens num colosso de ônibus de várias procedências. Alguns (ônibus, não estudantes) tornaram-se fregueses de nossas ruas e avenidas. A cada vestibular aparecem de novo. Sinto um prazer infantil em admirá-los. Sua elegante beleza é um convite a viajar para lugares desconhecidos. Lembram meu tempo de criança. Eu nem sonhava com outra forma de viajar que não de ônibus. Naquele tempo eles eram diferentes. No interior em que vivíamos, ônibus era uma gaiola comprida na qual se enfiavam quantos infelizes coubessem.  Às vezes, até mais do que cabiam. Levados por centenas de quilômetros, o tempo parecia não ter fim. Conforto, nenhum. Espremidos no meio de sacos de mantimentos, de pacotes, quando não de frango ou de leitãozinho peado, os passageiros suavam como tampa de chaleira. Mães com nenê sofriam o que não sonhavam haver de sofrimento. O ambiente recendia a vestiário de futebol em tarde de dezembro. Só a necessidade fazia embarcar em tal carroção motorizado.
Agora, tudo é diferente. A vida mudou para melhor. Essa molecada que se diverte – com tablets, smartphones e mais quantas novas bugigangas eletrônicas o comércio lança, todo mês – não dá conta de calcular a moleza que é viajar nos dias de hoje. Mesmo de ônibus. Os atuais são ultramodernos, espaçosos, dotados de tantos itens de conforto que nem em casa conseguimos colocar. Conforme a ocasião, oferecem viagem mais agradável ou rápida que as modernas aeronaves que cortam os ares.
Alguns ônibus destinados ao vestibular de nossas universidades procedem do interior paulista. De cidades como Birigui, Penápolis, Votorantim... Imagino-os locados por cursinhos da região. De tê-los visto tantas vezes, já os tenho como amigos. Dois em especial me cativam a atenção acima dos demais. Descobri-os no ano passado. Voltaram para o vestibular desta semana. Sem receio de me enganar, garanto que são mais bonitos e mais novos que todos os outros. Nas laterais, em grandes e graciosas letras manuscritas, o nome da empresa, que é também o da cidade: Poloni Turismo. Ninguém faz ideia do que isso quer dizer. Mas para mim é importante. Eles são da minha cidade. Minha e de mais quatro maringaenses. Podem achar tolice, mas não sabem vocês o custo que é explicar meu local de nascimento, toda vez que me pedem a informação. Explico que se trata de uma pequena cidade da Araraquarense (5.500 habitantes), próxima de São José do Rio Preto. Que o nome foi dado pelo fundador, Cândido Poloni, de ascendência italiana, que, em 3 de maio de 1926, fundou uma vila no meio dos cafezais da região. Para os céticos os ônibus estão aí provando que ela existe.
A maior parte da infância, vivi no sítio. Morei só em duas cidades. Bem pequenas, e por pouquíssimo tempo. Ambas levam o nome do seu criador. A outra é Jales, iniciada por um engenheiro de nome Euphly Jales, em 1940. Conheci ambos os fundadores. Que, evidentemente, nem se deram conta de minha insignificante existência. Mais de meio século depois, divulgo as cidades que fundaram. Obscuros povoados, que me ajudaram a ser o adulto que hoje sou.
Alguns renegam sua origem modesta. Mas valor, se temos algum, nós o levamos dentro de nós. E ele começou a ser construído na cidadezinha humilde, que jamais deixa de ser nossa.