sábado, 20 de julho de 2013

O bom rabi e o cão - por padre Orivaldo Robles

Uma fábula oriental conta que, nos arredores de Jerusalém, várias pessoas distraíam-se a contemplar um cão morto, estirado no caminho. Mostravam nojo e desprezo, ao tempo em que emitiam opiniões sobre o motivo de o terem arrastado até ali. “Deve ter sido um daqueles cães vagabundos, que invadem quintais para roubar comida”, disse um. “Com esse pelo coberto de rabugem, bem se vê que foi um cão vadio, que nunca teve dono”, arriscou outro. Um terceiro emendou: “Vai ver, algum morador da redondeza o matou e abandonou-o aí para os corvos”. Essas e ideias de igual teor eram expostas em voz alta e sem disfarce. Foi quando se achegou um desconhecido. Seu rosto refletia luz invulgar, que atraía atenção e respeito. Estava claro que ouvira os comentários feitos. Lançou sobre o animal morto um olhar de piedade e arrematou com doçura: “Nenhuma pérola seria capaz de brilhar tanto como a brancura dos seus dentes”.
A admiração tomou conta até dos mais afastados. Voltaram-se todos para ele. E como outro grupo que, em diferente oportunidade, lhe tinha exigido a condenação de uma mulher surpreendida em adultério, cabisbaixos e envergonhados, um por um, começaram a retirar-se. Os mais velhos, na frente. Um jovem de cabeleira farta e barba eriçada arriscou o palpite: “Esse não será Jesus de Nazaré, o rabi de quem falam maravilhas? Quem, senão ele, veria qualidades até num cão morto”?
Conheço a fábula desde não sei quando. Na realidade, faz muito tempo. O texto apresenta, aqui ou ali, pequenas variantes. No entanto, é sempre o mesmo relato. Nunca lhe soube a origem até que, agora, ao pesquisar, vim saber que está no livro “Lendas do bom rabi”, de Malba Tahan, pseudônimo de Júlio César de Mello e Souza (1895-1974). Apaixonado por Matemática e pela cultura árabe, ele dignificou, como poucos, a carreira de professor, que exerceu durante a vida inteira.
Desculpe-me, inusitado leitor, andei divagando. A fábula vale pela sua moral. Não é fato verídico, porém aduz precioso ensinamento. Atual também.
No trânsito, nunca uma criança do veículo à sua frente lhe mostrou a língua? Calculo que você ficou sem graça. “Que eu fiz para merecer isso?”, deve ter-se perguntado. Ligue não, assim é nosso mundo. Sartre propôs que “o inferno são os outros”. Na sociedade agressiva e injusta em que vivemos, filhos são preparados para competir na vida adulta. Aprendem, desde cedo, a encarar os outros como adversários. Como concorrentes interessados em roubar aquela vaga na creche, no hospital, na universidade, no emprego, no trânsito...
“Quem é o meu próximo?” (Lc 10,29), pergunta-se no Evangelho. A sociedade atual não dá a mínima para a resposta do Mestre. Já tem a sua: “Próximo é o sujeito no qual devo pisar sempre. Ele não tem nenhuma qualidade boa. O próximo não presta”. Ele é a Geni da música do Chico Buarque. Ou pior.

É!... Perdemos na poeira do tempo aquilo que o bom rabi viveu e transmitiu. Para muitos a sua doutrina transformou-se num amontoado de conselhos para consolar perdedores. A História registra e admira os feitos dos que venceram. Dos senhores de povos e nações. Daqueles cujas conquistas se adubaram no ódio e na violência. A isso chamam civilização. Também dão o nome de progresso.

sábado, 13 de julho de 2013

O profeta e a cidade - por padre Orivaldo Robles

O profeta é um visionário. Seu olhar penetra o que a outros é inatingível. Ele colhe na intimidade com Deus o talento para ditos que encantam. É vizinho, senão gêmeo do poeta. Como este, transmite noções com um talento que embasbaca. À gente ignara ocorre, por vezes: “Como não pensei nisso”? Mas dom é dom: não se dá a quem quer. Nada se faz por merecê-lo. Quem o possui simplesmente o ganhou. Para desfrute não de proveito pessoal, mas aberto ao bem de todos.
No século 8° a. C., em anúncio dos tempos messiânicos, Isaías formulou uma proposta assombrosa. E, ao mesmo tempo, encantadora: “O lobo será hóspede do cordeiro, o leopardo vai se deitar ao lado do cabrito. O bezerro e o leãozinho pastarão juntos; uma criança pequena tangerá os dois. O urso e a vaca pastarão unidos, enquanto suas crias descansarão lado a lado. O leão comerá capim como o boi. O bebê vai brincar no covil da víbora; a criancinha enfiará a mão na toca da serpente” (Is 11,6-8). A quem não sensibiliza o lirismo da descrição? Que não deixa, ao mesmo tempo, de ser, em toda a essência e vigor, palavra de Deus. Instado a propor ao reino de Judá o projeto divino, reúne Isaías e harmoniza dons de profeta e poeta.
No final do livro, o texto de um terceiro profeta, distinto também do Dêutero-Isaías (Is 40 a 55), descortina o clima do retorno a Jerusalém, ao fim do exílio da Babilônia (587-538): “Alegrai-vos com Jerusalém e exultai com ela todos vós que a amais; tomai parte em seu júbilo todos vós que choráveis por ela. Assim podereis sugar o leite de seus seios acolhedores. Podereis sugar e vos deleitar em seus peitos generosos. Farei correr para ela a paz como um rio e a glória das nações como torrente transbordante. Sereis amamentados, carregados ao colo e acariciados sobre os joelhos. Como mãe, que acaricia o filho, assim vos consolarei. E sereis consolados em Jerusalém” (Is 66,10-13).
Jerusalém quer dizer morada da paz. No mais profundo anseio bíblico ela é vista como cidade da felicidade, da paz. Não da mera ausência de conflitos. Mas da harmonia e total bem-estar das pessoas. Esta é a Jerusalém anunciada pelo profeta. No fundo, a cidade pela qual ansiamos todos nós. Ninguém há que não sonhe com uma cidade que o amamente, carregue no colo, acaricie sobre os joelhos. Em qualquer idade, afirmamos nossa necessidade de colo. O regaço materno será, por toda a vida, o modelo cabal de felicidade a que nos transportam nossas lembranças.
Que privação acha o leitor que denunciavam os manifestantes do mês passado? Não por acaso, a imensa maioria se compunha de jovens. Expressavam o desejo de que sua cidade fosse morada da paz para todos. Da paz que assossega por inteiro o coração. Por isso, assim do nada, com só o recurso das redes sociais, fizeram ecoar seu grito por São Paulo e Rio. Não só: a partir daí, por cidades do Brasil inteiro. Do Rio Grande do Sul à Paraíba e Roraima. Preso na garganta eles traziam não o grito por uns poucos centavos da tarifa urbana, mas pela falta de saúde, escola, segurança, locomoção, trabalho, dignidade, infraestrutura, respeito, futuro... Pela necessidade de vencer a corrupção, a desigualdade social, a falta de oportunidades.

Agora, se fala dos oportunistas, caroneiros, aproveitadores... Dos diversionistas que defendem a própria pele e o próprio poder. Que, apesar deles, não se apague a justa aspiração por nossas Jerusaléns. Por nossas cidades da paz. Cidades nas quais vejamos respeitada a dignidade de todos os irmãos. Até da maioria, que não conhece como é a vida no andar de cima.

sábado, 6 de julho de 2013

Lições de futebol - por padre Orivaldo Robles

Sabe aquela propaganda do bancário que cresceu ao lado do amigo e, para cada etapa que cita, vai repetindo: “Ele, titular; eu, banco”? Fosse comigo, a frase seria: “Ele, titular; eu, gandula”. Nem banco seria. Futebol, devo admitir, nunca foi exatamente minha praia. Apesar de eu ter sido fominha por bola e jogar o mais que podia. Foi o único esporte que pratiquei. Mas, se tivesse cometido a burrice de tentá-lo profissionalmente, na certa morreria de fome. Em campo fui sempre ponta-direita. Daqueles antigos, que vestiam a camisa sete, carregavam a bola até à linha de fundo e cruzavam, na esperança de que aparecesse alguém na área para mandá-la às redes. Tive desempenho medíocre, reconheço. Marquei também gols importantes. Menos, porém, do que se contam nos dedos das mãos.
Como a maioria dos brasileiros, aprecio uma partida de futebol bem jogada.  Sobretudo da seleção brasileira. Só que não me deixo engambelar por manobras politiqueiras, que exploram a paixão do povo com o propósito de angariar simpatia e votos. Interesso-me pela peleja desportiva, pelo esforço dentro de campo, pela vitória honesta. Se por goleada, melhor ainda. Sou do tempo em que, nos jogos da seleção brasileira, a pergunta era de quanto tinha ganhado. Ela não perdia.
Reconhecendo, embora, os problemas de toda ordem que, nestes dias, assolam o País, não me pude furtar ao sabor da vitória, domingo passado, 30 de junho, sobre a seleção espanhola de tantas e merecidas glórias. A Copa das Confederações me deu enorme alegria. Eu vinha com a seleção “roja” atravessada na garganta. Queria que a final fosse Brasil x Espanha. Mas estava certo de que a Espanha venceria.
Eu, 47 milhões de espanhóis residentes na Espanha e todos os outros espalhados pelo mundo. Era quase impossível nossa equipe, reunida há pouco tempo, vencer uma potência dirigida há cinco anos pelo mesmo treinador e composta pelos melhores jogadores da Europa. Para eles deve ter sido muito duro engolir a derrota. Pior ainda, pelo placar elástico e pelo domínio brasileiro em campo.
Mas nada justifica patriotada. Nem desvalorização de conquista alheia. Como tentou jornalista espanhol, ao entrevistar o treinador e, em seguida, o goleiro da Espanha. Por duas vezes, ele insistiu em atribuir a derrota ao cansaço dos jogadores. Ao fato de, três dias antes, contra a Itália, terem sustentado uma partida extenuante, que se prolongou até ao tempo extra e às penalidades. Autênticos e elegantes, treinador e arqueiro reconheceram que os brasileiros tinham jogado melhor que os espanhóis. Simplesmente isso.
Esqueceu-se o repórter que, na 1ª fase, a Itália tivera adversários pedreira, como Brasil, México e Japão. Enquanto isso, a Espanha enfrentara Uruguai e as babas Nigéria e Taiti. Na final, em Salvador, a Itália jogou contra o Uruguai, sob o sol das treze horas. Teve nova prorrogação e nova disputa de penalidades. E venceu. Contra o Brasil, no Maracanã, a Espanha jogou os 90 minutos regulamentares, à noite e em temperatura bem mais amena. Quem experimentou maior cansaço?

Por que certas pessoas sentem dificuldade em admitir que outras – em idênticas ou até em piores condições – levem sobre elas uma justa vantagem? Será tão difícil suportar que outros nos superem em algum aspecto? Por que a ânsia de ser superior sempre e em tudo?