Uma fábula oriental conta que, nos
arredores de Jerusalém, várias pessoas distraíam-se a contemplar um cão morto,
estirado no caminho. Mostravam nojo e desprezo, ao tempo em que emitiam
opiniões sobre o motivo de o terem arrastado até ali. “Deve ter sido um
daqueles cães vagabundos, que invadem quintais para roubar comida”, disse um.
“Com esse pelo coberto de rabugem, bem se vê que foi um cão vadio, que nunca
teve dono”, arriscou outro. Um terceiro emendou: “Vai ver, algum morador da
redondeza o matou e abandonou-o aí para os corvos”. Essas e ideias de igual
teor eram expostas em voz alta e sem disfarce. Foi quando se achegou um
desconhecido. Seu rosto refletia luz invulgar, que atraía atenção e respeito.
Estava claro que ouvira os comentários feitos. Lançou sobre o animal morto um
olhar de piedade e arrematou com doçura: “Nenhuma pérola seria capaz de brilhar
tanto como a brancura dos seus dentes”.
A admiração tomou conta até dos mais
afastados. Voltaram-se todos para ele. E como outro grupo que, em diferente
oportunidade, lhe tinha exigido a condenação de uma mulher surpreendida em
adultério, cabisbaixos e envergonhados, um por um, começaram a retirar-se. Os
mais velhos, na frente. Um jovem de cabeleira farta e barba eriçada arriscou o
palpite: “Esse não será Jesus de Nazaré, o rabi de quem falam maravilhas? Quem,
senão ele, veria qualidades até num cão morto”?
Conheço a fábula desde não sei quando.
Na realidade, faz muito tempo. O texto apresenta, aqui ou ali,
pequenas variantes. No entanto, é sempre o mesmo relato. Nunca lhe soube a
origem até que, agora, ao pesquisar, vim saber que está no livro “Lendas do bom
rabi”, de Malba Tahan, pseudônimo de Júlio César de Mello e Souza (1895-1974).
Apaixonado por Matemática e pela cultura árabe, ele dignificou, como poucos, a
carreira de professor, que exerceu durante a vida inteira.
Desculpe-me, inusitado leitor, andei
divagando. A fábula vale pela sua moral. Não é fato verídico, porém aduz
precioso ensinamento. Atual também.
No trânsito, nunca uma criança do
veículo à sua frente lhe mostrou a língua? Calculo que você ficou sem graça.
“Que eu fiz para merecer isso?”, deve ter-se perguntado. Ligue não, assim é
nosso mundo. Sartre propôs que “o inferno são os outros”. Na sociedade
agressiva e injusta em que vivemos, filhos são preparados para competir na vida
adulta. Aprendem, desde cedo, a encarar os outros como adversários. Como
concorrentes interessados em roubar aquela vaga na creche, no hospital, na
universidade, no emprego, no trânsito...
“Quem é o meu próximo?” (Lc 10,29),
pergunta-se no Evangelho. A sociedade atual não dá a mínima para a resposta do
Mestre. Já tem a sua: “Próximo é o sujeito no qual devo pisar sempre. Ele não
tem nenhuma qualidade boa. O próximo não presta”. Ele é a Geni da música do
Chico Buarque. Ou pior.
É!... Perdemos na poeira do tempo
aquilo que o bom rabi viveu e transmitiu. Para muitos a sua doutrina
transformou-se num amontoado de conselhos para consolar perdedores. A História
registra e admira os feitos dos que venceram. Dos senhores de povos e nações.
Daqueles cujas conquistas se adubaram no ódio e na violência. A isso chamam
civilização. Também dão o nome de progresso.
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