O
profeta é um visionário. Seu olhar penetra o que a outros é inatingível. Ele
colhe na intimidade com Deus o talento para ditos que encantam. É vizinho,
senão gêmeo do poeta. Como este, transmite noções com um talento que embasbaca.
À gente ignara ocorre, por vezes: “Como não pensei nisso”? Mas dom é dom: não
se dá a quem quer. Nada se faz por merecê-lo. Quem o possui simplesmente o ganhou.
Para desfrute não de proveito pessoal, mas aberto ao bem de todos.
No
século 8° a. C., em anúncio dos tempos messiânicos, Isaías formulou uma
proposta assombrosa. E, ao mesmo tempo, encantadora: “O lobo será hóspede do
cordeiro, o leopardo vai se deitar ao lado do cabrito. O bezerro e o leãozinho
pastarão juntos; uma criança pequena tangerá os dois. O urso e a vaca pastarão
unidos, enquanto suas crias descansarão lado a lado. O leão comerá capim como o
boi. O bebê vai brincar no covil da víbora; a criancinha enfiará a mão na toca
da serpente” (Is 11,6-8). A quem não sensibiliza o lirismo da descrição? Que
não deixa, ao mesmo tempo, de ser, em toda a essência e vigor, palavra de Deus.
Instado a propor ao reino de Judá o
projeto divino, reúne Isaías e harmoniza dons de profeta e poeta.
No
final do livro, o texto de um terceiro profeta, distinto também do
Dêutero-Isaías (Is 40 a 55), descortina o clima do retorno a Jerusalém, ao fim
do exílio da Babilônia (587-538): “Alegrai-vos com Jerusalém e exultai com ela
todos vós que a amais; tomai parte em seu júbilo todos vós que choráveis por
ela. Assim podereis sugar o leite de seus seios acolhedores. Podereis sugar e
vos deleitar em seus peitos generosos. Farei correr para ela a paz como um rio
e a glória das nações como torrente transbordante. Sereis amamentados,
carregados ao colo e acariciados sobre os joelhos. Como mãe, que acaricia o
filho, assim vos consolarei. E sereis consolados em Jerusalém” (Is 66,10-13).
Jerusalém
quer dizer morada da paz. No mais profundo anseio bíblico ela é vista como
cidade da felicidade, da paz. Não da mera
ausência de conflitos. Mas da harmonia e total bem-estar das pessoas. Esta é a
Jerusalém anunciada pelo profeta. No fundo, a cidade pela qual ansiamos todos
nós. Ninguém há que não sonhe com uma cidade que o amamente, carregue no colo,
acaricie sobre os joelhos. Em qualquer idade, afirmamos nossa necessidade de
colo. O regaço materno será, por toda a vida, o modelo cabal de felicidade a
que nos transportam nossas lembranças.
Que
privação acha o leitor que denunciavam os manifestantes do mês passado? Não por
acaso, a imensa maioria se compunha de jovens. Expressavam o desejo de que sua
cidade fosse morada da paz para todos. Da paz que assossega por inteiro o
coração. Por isso, assim do nada, com só o recurso das redes sociais, fizeram
ecoar seu grito por São Paulo e Rio. Não só: a partir daí, por cidades do
Brasil inteiro. Do Rio Grande do Sul à Paraíba e Roraima. Preso na garganta
eles traziam não o grito por uns poucos centavos da tarifa urbana, mas pela
falta de saúde, escola, segurança, locomoção, trabalho, dignidade,
infraestrutura, respeito, futuro... Pela necessidade de vencer a corrupção, a
desigualdade social, a falta de oportunidades.
Agora,
se fala dos oportunistas, caroneiros, aproveitadores... Dos diversionistas que
defendem a própria pele e o próprio poder. Que,
apesar deles, não se apague a justa aspiração por nossas Jerusaléns. Por nossas
cidades da paz. Cidades nas quais vejamos respeitada a dignidade de todos os irmãos.
Até da maioria, que não conhece como é a vida no andar de cima.
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