sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Feliz Ano-Novo - por Frei Betto


Por que desejar Feliz Ano-Novo se há tanta infelicidade à nossa volta? Será feliz o próximo ano para afegãos e palestinos, e os soldados usamericanos sob ordens de um governo imperialista que qualifica de "justas” guerras de ocupações genocidas?
Serão felizes as crianças africanas reduzidas a esqueletos de olhos perplexos pela tortura da fome? Seremos todos felizes conscientes dos fracassos de Copenhague, que salvam a lucratividade e comprometem a sustentabilidade?
O que é felicidade? Aristóteles assinalou: é o bem maior a que todos almejamos. E meu confrade Tomás de Aquino alertou: mesmo ao praticarmos o mal. De Hitler a madre Teresa de Calcutá, todos buscam, em tudo que fazem, a própria felicidade.
A diferença reside na equação egoísmo/altruísmo. Hitler pensava em suas hediondas ambições de poder. Madre Teresa, na felicidade daqueles que Frantz Fanon denominou "condenados da Terra”.
A felicidade, o bem mais ambicionado, não figura nas ofertas do mercado. Não se pode comprá-la, há que conquistá-la. A publicidade empenha-se em nos convencer de que ela resulta da soma dos prazeres. Para Roland Barthes, o prazer é "a grande aventura do desejo”.
Estimulado pela propaganda, nosso desejo exila-se nos objetos de consumo. Vestir esta grife, possuir aquele carro, morar neste condomínio de luxo – reza a publicidade – nos fará felizes.
Desejar Feliz Ano-Novo é esperar que o outro seja feliz. E desejar que também faça os outros felizes? O pecuarista que não banca assistência médico-hospitalar para seus peões e gasta fortunas com veterinários de seu rebanho, espera que o próximo tenha também um Feliz Ano-Novo?
Na contramão do consumismo, Jung dava razão a São João da Cruz: o desejo busca sim a felicidade, "a vida em plenitude” manifestada por Jesus, mas ela não se encontra nos bens finitos ofertados pelo mercado. Como enfatizava o professor Milton Santos, acha-se nos bens infinitos.
A arte da verdadeira felicidade consiste em canalizar o desejo para dentro de si e, a partir da subjetividade impregnada de valores, imprimir sentido à existência. Assim, consegue-se ser feliz mesmo quando há sofrimento.
Trata-se de uma aventura espiritual. Ser capaz de garimpar as várias camadas que encobrem o nosso ego.
Porém, ao mergulhar nas obscuras sendas da vida interior, guiados pela fé e/ou pela meditação, tropeçamos nas próprias emoções, em especial naquelas que traem a nossa razão: somos ofensivos com quem amamos; rudes com quem nos trata com delicadeza; egoístas com quem é generoso; prepotentes com quem nos acolhe em solícita gratuidade.
Se logramos mergulhar mais fundo, além da razão egótica e dos sentimentos possessivos, então nos aproximamos da fonte da felicidade escondida atrás do ego. Ao percorrer as veredas abissais que nos conduzem a ela, os momentos de alegria se consubstanciam em estado de espírito. Como no amor.
Feliz Ano-Novo é, portanto, um voto de emulação espiritual. Claro, muitas outras conquistas podem nos dar prazer e alegre sensação de vitória. Mas não são o suficiente para nos fazer felizes. Melhor seria um mundo sem miséria, desigualdade, degradação ambiental, políticos corruptos!
Essa infeliz realidade que nos circunda, e da qual somos responsáveis por opção ou omissão, constitui um gritante apelo para nos engajarmos na busca de "outros mundos possíveis”. Contudo, ainda não será o Feliz Ano-Novo.
O ano será novo se, em nós e à nossa volta, superarmos o velho. E velho é tudo aquilo que já não contribui para tornar a felicidade um direito de todos. À luz de um novo marco civilizatório há que superar o modelo desenvolvimentista-consumista e introduzir, no lugar do PIB, a FIB (Felicidade Interna Bruta), fundada na economia solidária e sustentável.
Se o novo se faz advento em nossa vida espiritual, então com certeza teremos, sem milagres ou mágicas, um Feliz Ano-Novo, ainda que o mundo prossiga conflitivo; a crueldade travestida de doces princípios; e o ódio disfarçado de discurso amoroso.
A diferença é que estaremos conscientes de que, para se ter um Feliz Ano-Novo, é preciso abraçar um processo ressurrecional: engravidar-se de si mesmo, virar-se pelo avesso e deixar o pessimismo para dias melhores.

Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=73023

sábado, 15 de dezembro de 2012

Irmãs deixam o Albergue - por padre Orivaldo Robles


“Desde o final dos anos 40, praticamente desde seu nascimento, a cidade de Maringá acostumou-se com o espetáculo de gente indo e vindo em busca de emprego. No início, eram trabalhadores rurais, sem outra qualificação além dos próprios braços, atrás de alguma colocação nas muitas propriedades de café que se abriam com a derrubada do mato. Perambulavam pela cidade e, como não dispunham de dinheiro, também não conseguiam hospedagem nos poucos hotéis existentes. Ao chegar, dom Jaime encontrou funcionando na cidade um “albergue”; na verdade, modesta hospedaria de madeira sem conforto, mantida pelo poder público estadual, onde os necessitados recebiam atendimento sofrível. Condoído dessa parte infeliz do seu rebanho, em 1958 iniciou entendimentos com os responsáveis do FATR – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural, precursor do FUNRURAL, sobre a possibilidade de transferir para a Igreja Católica o cuidado da instituição. Em 27 de março de 1959, as Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo vieram dirigir a obra que, por causa da cofundadora da congregação (junto com São Vicente de Paulo), recebeu o nome de Albergue Santa Luiza de Marillac. O primeiro grupo era formado por irmãs Sebastiana Domingues, Ivone Nazari e Delfina Gretter. Ao longo de seus quase 50 anos nas mãos da Igreja, foi recebendo reformas e melhoramentos, ampliando-se sempre mais, a ponto de hoje oferecer instalações e atendimento dificilmente igualados por instituição oficial destinada à mesma clientela” - trecho do livro deste cronista “A Igreja que brotou da mata – Os 50 anos da Diocese de Maringá” (pág.190-191, Dental Press Editora, 2007).
Por mais de cinco décadas o albergue prestou “atendimento aos pobres, oferecendo cuidados de higiene, alimentação, pernoite, roupas, calçados, medicamentos, além de assistência social para encaminhamento na solução de problemas individuais como saúde mental, internamento hospitalar, procura de familiares, retorno à região de origem etc. São ainda proporcionados serviços de aconselhamento em situações difíceis, e orientação espiritual. Com uma clientela diária girando por volta de 100 pessoas, ou mais de 2500 pobres acolhidos por mês, o albergue vem ultimamente assistindo uma média superior a 30.000 clientes/ano” (id. ib.).
A alma do albergue e a razão da credibilidade do trabalho ali desenvolvido sempre foram as prestimosas irmãs Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, a mesma congregação que cuida do Núcleo Social Papa João 23, onde somam esforços também os Irmãos Maristas das Escolas, através do Centro Social Marista Irmão Beno Tomasoni. Quem quiser conhecer o amor dessas irmãs aos pobres peça a dom Jaime que fale sobre irmã Salomé Dets, autêntica irmã Dulce maringaense, que aqui trabalhou na década de 60, fazendo sempre questão de atender os mais miseráveis e desprezados de todos. Não é verdade, como alegam alguns, que as irmãs não farão falta. Farão, sim, e muita. Foi pelo seu exemplo que centenas ou milhares de voluntários se sentiram estimulados a colaborar para que o albergue chegasse àquilo que é hoje. Por 20 anos, eu mesmo incentivei os fiéis da Paróquia Santa Maria Goretti a colaborar com o albergue. A resposta sempre foi admirável. Não seria porque a total entrega das irmãs mostrava de forma clara como os pobres devem ser tratados?

sábado, 8 de dezembro de 2012

Rubem Alves e o presépio - por padre Orivaldo Robles


Tenho uma saudável inveja do pensador Rubem Alves. Nada de mais que um padre seja fã de carteirinha de um pastor protestante. Que já não pastoreia, mas continua a oferecer preciosidades da fé, da cultura e das letras. Sem pedir licença, transcrevo quase inteira sua crônica de 23/12/ 2008, publicada originalmente na Folha de São Paulo:
“Menino, lá em Minas, eu tinha inveja dos católicos. Eu era protestante sem saber o que fosse isso. Sabia que, pelo Natal, a gente armava árvores com flocos de algodão imitando neve que não sabíamos o que fosse. Já os católicos faziam presépios.
Os pinheiros eram bonitos, mas não me comoviam como o presépio: uma estrela no céu, uma cabaninha na terra coberta de sapé, Maria, José, os pastores, ovelhas, vacas, burros, misturados com reis e anjos numa mansa tranquilidade, os campos iluminados com a glória de Deus, milhares de vagalumes acendendo e apagando suas luzes, tudo por causa de uma criancinha. A contemplação de uma criancinha amansa o universo.
O Natal anuncia que o universo é o berço de uma criança. Até os católicos mais humildes faziam um presépio. As despidas salas de visita se transformavam em lugares sagrados. As casas ficavam abertas para quem quisesse se juntar aos reis, pastores e bichos. E nós, meninos, pés descalços, peregrinávamos de casa em casa, para ver a mesma cena repetida e beijar a fita. Nós fazíamos os nossos próprios presépios. Os preparativos começavam bem antes do Natal. Enchíamos latas vazias de goiabada com areia, e nelas semeávamos alpiste ou arroz. Logo os brotos verdes começavam a aparecer. O cenário do nascimento do Menino Jesus tinha de ser verdejante. Sobre os brotos verdes espalhávamos bichinhos de celuloide. Naquele tempo ainda não havia plástico. Tigres, leões, bois, vacas, macacos, elefantes, girafas. Sem saber, estávamos representando o sonho do profeta que anunciava o dia em que os leões haveriam de comer capim junto com os bois e as crianças haveriam de brincar com as serpentes venenosas. A estrebaria nós mesmos a fazíamos com bambus. E as figuras que faltavam, nós as completávamos artesanalmente com bonequinhos de argila. Tinha também de haver um laguinho onde nadavam patos e cisnes, que se fazia com um pedaço de espelho quebrado. Não importava que os patos fossem maiores que os elefantes. No mundo mágico tudo é possível. [...] Um presépio verdadeiro tem de ser infantil. E as figuras mais desproporcionais nessa cena tranquila éramos nós mesmos. Porque, se construímos o presépio, era porque nós mesmos gostaríamos de estar dentro da cena. (Não é possível estar dentro da árvore!). Éramos adoradores do Menino, juntamente com os bichos, as estrelas, os reis e os pastores. [...] Seria tão bom se os pais contassem essa estória para os seus filhos”!
Ah, velho mestre, os pais não perdem tempo com isso, não. Hoje o povo pratica uma religião nova e sedutora: o comércio. As pessoas frequentam o shopping, seu templo atual. Adoram um novo deus, o mercado. Cultivam virtudes novas: moda, luxo, compras, consumo... Pregadores agora são os promotores de vendas.  O Menino Jesus não passou no teste. Ele não se dá bem com dinheiro. Contrataram Papai Noel, um fenômeno de vendas. À sua chegada fazem festa. O Menino? Ah, não ligam mais pra ele.
Não é estranho? Pois o Natal comemora justamente o seu nascimento!

sábado, 1 de dezembro de 2012

Gente que ainda existe - por padre Orivaldo Robles


Num dia desta semana, encontrei por acaso duas amigas queridas. Trocamos algumas palavras. Conversa entre amigos não segue planejamento nem conhece trava ou segredo. É papo aberto, que brota da liberdade e da confiança, sobre qualquer assunto. Não se sujeita à censura nem fiscaliza as palavras. É inevitável sair algo que estranhos tomariam por grosseria. Como um daqueles despautérios do personagem Chaves, da TV, que, após soltá-lo, corre logo a desculpar-se: “Me escapou!”. Uma das amigas falava sobre seu filhinho, que se mostra sempre atento às necessidades dos outros. Deu um exemplo para ilustrar. A uma senhora que, por pouco, não tinha levado um tombo capaz de feri-la com gravidade, ele perguntou: “A senhora está bem? Está precisando de alguma coisa?” Isso lá é conversa de um menino de cinco anos? Mal tinha a mãe contado o episódio, fui tomado pelo espírito do Chaves. Sem refletir, soltei em voz alta: “Vai ser um bobo a vida inteira”. Eu não pensava só no garotinho. Nem me referia diretamente a ele. Tinha em mente o meu velho e o seu peculiar jeito de enfrentar a vida.
O pai foi, em todos os seus dias, um daqueles que hoje a maioria das pessoas chama de tonto. Nunca foi capaz de admitir mentira. Acreditava piamente no que escutava. Aferrava-se à verdade com paixão. Não sabia enganar. Não conseguia puxar o tapete de quem quer que fosse. Menos ainda, passá-lo para trás, de qualquer maneira. Se topasse na rua com um pacote de dinheiro, com certeza não ia sossegar enquanto não achasse o dono. Na época em que nasci, era proprietário de um sítio em sociedade com tio Chico Zangali. (Em casa sempre ouvi contar maravilhas sobre o sítio da Santa Bárbara, que não tive oportunidade de conhecer.) Na mesma época o pai sofreu uma cirurgia de estômago. Quiçá para pagar tratamento de saúde – os filhos jamais cobraram explicação –, ele vendeu ao tio Chico a sua parte do sítio. Nunca mais foi dono de um palmo de terra. Sequer do lote em que repousam seus ossos, por mim conseguido, trinta anos depois.
Não precisei, felizmente, explicar às amigas porque o filhinho de uma delas ia ser um bobo, vida afora. Bastou contar poucas “aventuras” do pai. Minha amiga pôs-se a discorrer sobre as do seu que, para sua felicidade, ainda vive. Embora mais novo, a escola da vida em que se formou comprova que o tempo não introduziu mudanças no seu conteúdo programático. Ambos nossos pais pertencem àquela espécie de homens que supomos inencontráveis no nosso infeliz mundo de hoje. Ela contou coisas lindas a respeito dele, homem bom, destituído de qualquer malícia. Não desconfia da maldade de ninguém. Para ele todos são bons. Se familiares colocam reparo na ingenuidade do seu julgamento, ele se contraria: “Vocês não acreditam em ninguém. Pensam que só existe gente ruim”.
Há tempo venho refletindo nessas coisas. As notícias ajudam a formar nossa opinião sobre fatos e pessoas. Mas só se noticiam coisas ruins. Ninguém escuta, por exemplo, que mães são capazes de passar fome pelos filhos. Que pais trabalham à exaustão para lhes garantir um futuro digno. Na mídia pessoas humildes só aparecem como bandidos ou vítimas. No entanto são elas que carregam o mundo nas costas. A maioria absoluta da humanidade é formada de pessoas humildes e boas. Onde encontrá-las? Em nossa casa, em nossa rua. Basta olhar nosso pai, nossa mãe. E todos os que parecem com eles. Esses são os construtores do mundo bom que queremos.
Ainda bem que existem.