sábado, 9 de fevereiro de 2013

Vizinho danoso - por padre Orivaldo Robles


A avalanche de notícias sobre o incêndio da boate Kiss, de Santa Maria (RS), trouxe à tona relatos comoventes até para jornalistas traquejados em contar desgraças. No meio de tanta dor e desespero apareceram gestos de grandeza com que poucos contavam. Feitos por anônimos que, não obstante a pouca idade, se mostraram heróis autênticos. Jovens nem um pouco interessados em divulgar o que fizeram. E o que fizeram foi dar a vida para poupar da morte pessoas que nem conheciam. Quem os animou na esperança de resgatar vidas desconhecidas? Alheios à própria segurança escreveram, naquela sinistra noite, a página mais luminosa da história de Santa Maria. Fico imaginando que emoção cultivam pais, irmãos e colegas dos que, tentando salvar outros, se enfiaram naquele inferno de escuridão e calor.
A gente não se torna herói por um passe de mágica. Num instante de irreflexão. Antigo provérbio ensina que a natureza não dá saltos. O caráter molda-se de forma lenta, no custoso passar dos anos. Ouvimos histórias dessas vidas curtas, formadas em lares simples, por pais pobres, afeitos a princípios que o tempo não apaga. É o conforto que lhes suaviza o amargor dos anos. Mas também os orgulha pela criação que souberam dar aos rebentos.
Não sei se sou mal informado ou pessimista mesmo. Ando assustado com o que as crianças atuais aprendem. Ou desaprendem. Não me agrada dizer, mas venho de um tempo muito diferente. Fui criado na roça. Não dispúnhamos de um milésimo do que hoje se oferece aos filhos. Ignoro se era melhor ou pior. Era o possível. Alguns ditames de cunho humano e cristão, no entanto, se cultivavam em todas as famílias. Ainda que não frequentassem nenhuma igreja.
Solidariedade, por exemplo. Transmitia-se não por lição teórica, mas através do exemplo. À noite, o pai dizia: “Amanhã vamos trabalhar no café do seu Emílio. Ele está doente. Os meninos sozinhos não dão conta. Já derriçaram bastante. Mas uma chuva agora vai fazer tudo arder”. Ninguém estranhava. Todos agiam assim. Braços disponíveis se juntavam. De adultos e de crianças. No fim do dia, abanado e ensacado, o café do seu Emílio estava na tulha. No outro dia, estendido no terreirão. Dar um dia, ou mais, de serviço a quem precisava era normal. Roçada de pasto, capina de mato, colheita de cereais... Ninguém se recusava a ajudar. Cada um trabalhava para si, mas o prejuízo de um doía em todos. O grupo se esforçava para que cada família tirasse do seu trabalho o maior rendimento.
Era religião? Cultura? Tradição? Ninguém se preocupava em saber. Não se dava nem se pedia explicação. Fazia-se porque era necessário. Não havia nem ignorante nem egoísta a ponto de pensar só no próprio interesse. Ajudava hoje, amanhã podia ser ajudado. Era unânime a opinião: o bem comum se sobrepõe ao individual. Felicidade pessoal não convive com infelicidade alheia. Pessoas dotadas de um mínimo de lucidez não discutem isso. Está aí o mais elementar princípio: “Faz aos outros o que queres que te façam” (cf. Mt 7,12).
Na roça éramos atrasados, pois não? Na cidade as pessoas ficaram sabidas. Ou egoístas? Só se preocupam consigo mesmas. O egoísta inferniza a vida de todo o grupo em que se coloca. Exemplo: reunião de condomínio. Ele não está nem aí para o que é comum. Imagine se vai mover uma palha para o bem dos outros. Nem pensar. Assim é o progresso, né? Para que ser um bom vizinho? Melhor ser vizinho danoso. Os outros? Ora, eu indo bem, os outros que se danem!

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