segunda-feira, 25 de março de 2013

CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOTA DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA A RESPEITO DO ABORTO - por Dom João Petrini


Causou surpresa à sociedade brasileira a decisão tomada pelo Conselho Federal de Medicina, durante o I Encontro Nacional dos Conselhos de Medicina, favorável à interrupção da gravidez até a 12ª semana, como prevê a proposta do novo Código Penal, em discussão no Senado Federal. As imediatas reações contrárias a esse posicionamento demonstram a preocupação dos que defendem a vida humana desde sua concepção até a morte natural. Merece, por isso, algumas considerações.
O drama vivido pela mulher por causa de uma gravidez indesejada ou por circunstâncias que lhe dificultam sustentar a gravidez pode levá-la ao desespero e à dolorosa decisão de abortar. No entanto, é um equívoco pensar que o aborto seja a solução.
Nossa civilização foi construída apostando não na morte, mas na vitória sobre a morte. Por isso a Igreja criou hospitais, leprosários, casas para acolher deficientes físicos e psíquicos. Recorde-se, em época recente, a figura das Bem-aventuradas Madre Teresa de Calcutá e Irmã Dulce dos pobres, bem como os milhares de pessoas que, quotidianamente, se dedicam a defender e promover a vida humana e sua dignidade.
As constituições dos principais países ocidentais apresentam uma perspectiva claramente favorável à vida. A Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 1º, afirma que a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. E, no seu artigo 5º, garante a inviolabilidade do direito à vida.
Ajuda a evitar o aborto a implantação de políticas públicas que criem formas de amparo às mulheres grávidas nas mais variadas situações de vulnerabilidade e de alto risco, de tal modo que cada mulher, mesmo em situações de grande fragilidade, possa dar à luz seu bebê. Esta solução é a melhor tanto para a criança, que tem sua vida preservada, quanto para a mulher, que fica realizada quando consegue ter condições para levar a gravidez até o fim, evitando o drama e o trauma do aborto.
O Conselho Federal de Medicina ao se manifestar favorável ao aborto até 12 semanas parece não ter levado em consideração todos os fatores que entram em jogo nas situações que se pretendem enfrentar. Sua decisão, que não contou com a unanimidade dos Conselhos Regionais, deixa uma mensagem inequívoca: quando alguém atrapalha, pode ser eliminado.
Para justificar sua posição, o CFM evoca a autonomia da mulher e do médico, ignorando completamente a criança em gestação. Esta não é um amontoado de células sem maior significado, mas um ser humano com uma identidade biológica bem definida; com um código genético próprio, diferente do DNA da mãe. Amparado no ventre materno, o nascituro não constitui um pedaço do corpo de sua genitora, mas é um ser humano vivo com sua individualidade. A esse respeito convergem declarações de geneticistas e biomédicos.
Todos esses fatores precisam ser considerados no complexo debate sobre o aborto, reconhecendo os direitos do nascituro, dentre os quais o direito inviolável à vida que vem em primeiro lugar.
Que os legisladores sejam capazes de considerar melhor todos os aspectos da questão em pauta e que seja possível um diálogo efetivo, com abertura para alargar o uso da razão. O uso apropriado da mesma não descartaria nenhum fator, reconhecendo os direitos do nascituro, o primeiro deles, o direito inviolável à vida. Deste modo, será possível legislar em favor do verdadeiro bem das mulheres e dos nascituros, e se consolidará o Estado democrático, republicano e laico, que tanto desejamos.

domingo, 24 de março de 2013

A primeira pedra - por padre Orivaldo Robles


Com surpresa, pesar e oito meses de atraso, tomei conhecimento da morte do Augustinho. Morava em Mirassol, quando entrou no seminário de São José do Rio Preto. Era o caçula da nossa turma de 1953. No dia 11 de julho passado sofreu um enfarte. Estava com 69 anos, o que, para os nossos dias, não é velhice. Pesquisador do CNPq, apaixonado por temas que iam desde o “futebol até as mais complexas teorias da Física”, era uma “fonte viva de consulta”, na opinião de colegas. Já na infância, além do fino humor, revelava surpreendente inclinação para a Matemática, que fazia antever o notável professor em que se converteria. No seminário ficou pouco. Tempos depois que tinha saído, soubemos que ingressara no ITA – Instituto Tecnológico da Aeronáutica, de São José dos Campos. Era preciso ser muito cobra para isso. Para nós não foi novidade. O geniozinho acumularia título sobre título, até se laurear com o pós-doutorado pelo MIT – Massachussetts Institute of Tecnhology. Jamais abandonaria a paixão e a prática do ensino.
Dele recordo uma passagem própria dos meninos que éramos. Nosso pátio era amplo, em dois níveis, cortado no meio por um barranco em cuja falda se amontoavam terrões, que pareciam pedir para serem atirados em alguém. Por ali passávamos a caminho do campo de futebol. Num recreio de domingo, o Augustinho inventou uma provocação de brincadeira contra meia dúzia de colegas. Logo ele, o menorzinho de todos. Um Davi contra seis Golias. Em prudente distância, abriu dramaticamente os braços e desafiou: “Quem dentre vós não tiver pecado atire a primeira pedra”. Para sua surpresa, foi alvejado por uma chuva de duras bolotas de terra. Só lhe restou bater em retirada. Não sem protestar, aos berros: “Seus pagãos, vocês não conhecem o evangelho? Ninguém tacou pedra na mulher”. Inútil. Não lhe deram ouvidos. Perseguiram-no, morrendo de rir.
Vem-me à lembrança esse causo todas as vezes que leio, como na missa do último domingo, o episódio narrado por João (Jo 8,1-11). Jesus deu preciosa lição aos líderes religiosos do seu tempo. Lembrou-lhes que não eram melhores do que a mulher adúltera, que queriam apedrejar. É fácil imaginar a decepção que sentiram, acostumados como estavam a olhar os outros de cima para baixo, com desprezo e ar de superioridade.
Por que será tão difícil à nossa obstinada natureza humana admitir que todos somos passíveis de erro? Que não faz nenhum sentido presumirmos de ocupar posição melhor que nossos semelhantes? Pertencemos à mesma humanidade deles, cheia de idênticas misérias e defeitos. Ninguém está isento de cometer os erros que condena nos seus irmãos.
Exemplo: não é verdade que todos somos livres? Inclusive para professar a religião de nossa escolha. Então, por que não nos empenharmos em conviver harmoniosamente uns com os outros? Por que insultar quem segue orientação religiosa diferente? Blogs, facebooks e outras ferramentas das chamadas redes sociais fervilham de opiniões agressivas e repletas de ódio. Há gente que se aproveita da sombra do anonimato ou de codinome para expelir veneno. Ou inverdades. Que proveito a sociedade alcança com essa prática?  Felicidade, paz, bem-estar?
Estamos entrando na semana santa. Boa oportunidade para refletir: será que não tem pecado quem vive lançando diatribes contra a religião alheia? Qual seu interesse atirar a primeira pedra? Isso, quando não atira todas, da primeira à última.

sábado, 9 de março de 2013

Um inculto e nobre amigo - por padre Orivaldo Robles


Nenhum professor de História poria no filho o nome de Teglatfalasar, Vercingétorix ou Nabucodonosor. Na certa compraria briga com a mulher e pretexto para o divórcio. Contudo, de vez em quando, nos assustam nomes que mais parecem palavrões. Onde os pais os descobriram? E por que marcaram assim os filhos para o resto da vida?
Em Jales (SP), no meu segundo ano escolar, em 1949, transferido não sei de onde, entrou em minha sala um colega chamado Heliobas (com “o” fechado). Bizarro, sem dúvida, o nome; mais bizarro o dono. Não se via, entretanto, no grupo escolar inteiro, um estudante que lhe negasse a mais rasgada simpatia. Era uma figura rústica, quase selvagem. Ao mesmo tempo, de uma doçura ingênua e um coração tão puro que se tornava impossível não amá-lo. Não revelava preocupação alguma de ocultar sua procedência de uma família com recursos mais limitados até do que as nossas. E olhe que nós já éramos pobres o suficiente para atender à categoria socioeconômica de classe D. Até inferior, se houvesse. Para ele, no entanto, pobreza não constituía problema. Nela nascera e com ela se acertava muito bem, desde o berço. Ela era como um componente natural de sua vida.
Taludo, de compleição física superior à nossa, era também mais velho. Ainda assim, acompanhar a classe custava-lhe indisfarçável esforço. Não tinha sido boa sua escola anterior, se é que acaso tivesse frequentado uma. Possivelmente trabalhasse duro na roça. Na certa, residia longe do amontoado de casas a que dávamos o pomposo nome de cidade. Com paciência de pai, o professor Oscar Aidar cuidava de lhe respeitar a lentidão do ritmo. De certa feita, observando que toda a classe tinha copiado as dez questões do quadro, mandou um aluno apagá-lo. Lá do fundo, irrompeu a voz grossa de Heliobas: –“Pera um pouco, professor. Ainda tô na novena”. Ninguém riu. Não fosse ele, a reação teria sido outra. Mas dele ninguém caçoava. Era puro demais para sofrer atos de “bullying”, do qual nem ainda tínhamos ouvido falar.
Numa das caminhadas dominicais – atrás de frutas silvestres e banho nas águas cristalinas do riacho que corria pelo matagal ao fundo da chácara do tio Vito –, meu irmão Eraldo, alguns vizinhos e eu nos aventuramos além das vezes anteriores. De súbito, demos com um rancho. Naquela área nunca tínhamos pisado. Nem visto pobreza igual. Heliobas aceitou bem nossa presença anunciada pelos cachorros. Não demonstrou constrangimento pela choupana em que sua família morava. No meio do mato. Literalmente.
Passado pouco tempo, nos mudamos. Nunca depois consegui dele sequer notícia. Estará ainda vivo? Em que parte deste Brasilzão rico, desigual e injusto? Melhorou a dura vida que suportava sem queixa? Desfruta de saúde e de uma boa aposentadoria? Goza de paz interior e vive feliz, rodeado de bastantes amigos? Criou uma linda família, com filhos e netos que lhe confortam a velhice? Seria o mínimo para compensar-lhe a infância (e juventude?) tão sofrida(s).
Ah, caro amigo Heliobas, sabe Deus quantos, como você, arrastam a nosso lado a sua cruz. Em silêncio. Nós desviamos o rosto. Como se não nos dissessem respeito. Nem revestissem a mesma dignidade que para nós reivindicamos. Deus queira que um dia, tremendo de pavor, não tenhamos que ouvir: “Tive fome e não me destes de comer, sede e não me destes de beber...” (Mt 25,42).

sábado, 2 de março de 2013

O dia seguinte - por padre Orivaldo Robles



Na década de 50 do século passado, a última luz que se apagava no Vaticano era a do papa Pio 12. Até uma hora da madrugada, a Praça de São Pedro mostrava as venezianas iluminadas dos seus aposentos. Antes das seis, estavam de novo acesas. Trabalhador infatigável, dormia menos de cinco horas por noite.
Depois dele vieram cinco. Quatro morreram no cargo. O último, não. Desde anteontem, estão apagadas as luzes que o mostravam em casa. Fico matutando sobre sua primeira noite na condição de papa emérito. No Palácio Apostólico de Castel Gandolfo, enquanto espera a reforma do convento Mater Ecclesiae, sua nova residência, será que demorou a pegar no sono? Precisou de algum comprimido para dormir? Pois é raro modificar tanto a vida de um homem. Menos ainda, a vida de uma Igreja multissecular.
Ele não tomou, porém, sua decisão de afogadilho. Sabia o que estava fazendo: “Dei este passo com plena consciência da sua gravidade e também novidade, mas com profunda serenidade de espírito. Amar a Igreja significa também ter a coragem de fazer escolhas difíceis, dolorosas, tendo sempre diante dos olhos o bem da Igreja e não a nós mesmos”.
Para o cristão a fé é o fundamento da vida. A ninguém deveria surpreender a descrição do seu pontificado: ”Foi um pedaço de caminho da Igreja que teve momentos de alegria e luz, mas também momentos não fáceis; senti-me como São Pedro com os apóstolos na barca no lago da Galileia: o Senhor deu-nos muitos dias de sol e brisa suave, dias em que a pesca foi abundante; mas houve também momentos em que as águas estavam agitadas e o vento contrário – como, aliás, em toda a história da Igreja – e o Senhor parecia dormir” (catequese de 27/02, quarta-feira). Nenhuma queixa. Apenas citação da tempestade no lago (Mc 4,35-41). Ainda assim, houve interpretações peregrinas. Não quiseram ler o excerto “como, aliás, em toda a história da Igreja”. Bento 16 admitiu que a miséria, a fraqueza e o sofrimento são indissociáveis do gênero humano. Não se desagregam, portanto, da Igreja do Senhor.
Com dor e também com franqueza reconhecemos crimes e pecados em nosso meio. Bem que gostaríamos de uma Igreja impecável, constituída somente de anjos. Mas não existe. O próprio Senhor deixou expresso que veio chamar não justos, mas pecadores (cf. Mc 2,17). Melhor do que ninguém, sente-o um velho e sofrido papa. Com o profeta confessamos: “A ti, Senhor, convém a justiça; e a nós, hoje, resta-nos ter vergonha no rosto” (Dn 9,7). Mas a Igreja é de Cristo, que não exclui os pecadores. De qualquer religião e de até de religião nenhuma. Pois todos o somos.
“E, no entanto, é preciso cantar. Mais que nunca é preciso cantar. É preciso cantar e alegrar a cidade”. Parafraseando Toquinho e Vinícius, entendo que é preciso remar no agitado mar destes dias. Mesmo que não seja cada um de nós, como se definiu Bento 16, doravante mais do que um “simples peregrino que começa a última etapa de sua peregrinação nesta terra” (despedida em Castel Gandolfo, 28/02).