sábado, 2 de março de 2013

O dia seguinte - por padre Orivaldo Robles



Na década de 50 do século passado, a última luz que se apagava no Vaticano era a do papa Pio 12. Até uma hora da madrugada, a Praça de São Pedro mostrava as venezianas iluminadas dos seus aposentos. Antes das seis, estavam de novo acesas. Trabalhador infatigável, dormia menos de cinco horas por noite.
Depois dele vieram cinco. Quatro morreram no cargo. O último, não. Desde anteontem, estão apagadas as luzes que o mostravam em casa. Fico matutando sobre sua primeira noite na condição de papa emérito. No Palácio Apostólico de Castel Gandolfo, enquanto espera a reforma do convento Mater Ecclesiae, sua nova residência, será que demorou a pegar no sono? Precisou de algum comprimido para dormir? Pois é raro modificar tanto a vida de um homem. Menos ainda, a vida de uma Igreja multissecular.
Ele não tomou, porém, sua decisão de afogadilho. Sabia o que estava fazendo: “Dei este passo com plena consciência da sua gravidade e também novidade, mas com profunda serenidade de espírito. Amar a Igreja significa também ter a coragem de fazer escolhas difíceis, dolorosas, tendo sempre diante dos olhos o bem da Igreja e não a nós mesmos”.
Para o cristão a fé é o fundamento da vida. A ninguém deveria surpreender a descrição do seu pontificado: ”Foi um pedaço de caminho da Igreja que teve momentos de alegria e luz, mas também momentos não fáceis; senti-me como São Pedro com os apóstolos na barca no lago da Galileia: o Senhor deu-nos muitos dias de sol e brisa suave, dias em que a pesca foi abundante; mas houve também momentos em que as águas estavam agitadas e o vento contrário – como, aliás, em toda a história da Igreja – e o Senhor parecia dormir” (catequese de 27/02, quarta-feira). Nenhuma queixa. Apenas citação da tempestade no lago (Mc 4,35-41). Ainda assim, houve interpretações peregrinas. Não quiseram ler o excerto “como, aliás, em toda a história da Igreja”. Bento 16 admitiu que a miséria, a fraqueza e o sofrimento são indissociáveis do gênero humano. Não se desagregam, portanto, da Igreja do Senhor.
Com dor e também com franqueza reconhecemos crimes e pecados em nosso meio. Bem que gostaríamos de uma Igreja impecável, constituída somente de anjos. Mas não existe. O próprio Senhor deixou expresso que veio chamar não justos, mas pecadores (cf. Mc 2,17). Melhor do que ninguém, sente-o um velho e sofrido papa. Com o profeta confessamos: “A ti, Senhor, convém a justiça; e a nós, hoje, resta-nos ter vergonha no rosto” (Dn 9,7). Mas a Igreja é de Cristo, que não exclui os pecadores. De qualquer religião e de até de religião nenhuma. Pois todos o somos.
“E, no entanto, é preciso cantar. Mais que nunca é preciso cantar. É preciso cantar e alegrar a cidade”. Parafraseando Toquinho e Vinícius, entendo que é preciso remar no agitado mar destes dias. Mesmo que não seja cada um de nós, como se definiu Bento 16, doravante mais do que um “simples peregrino que começa a última etapa de sua peregrinação nesta terra” (despedida em Castel Gandolfo, 28/02).

Nenhum comentário: