Conheci homens e mulheres que
enfrentaram vida duríssima. Ganhavam o sustento com o suor do rosto. Suor de
todo o corpo. Tive chance de contemplar homens vestidos com o que parecia
baixeiro de cavalgadura. Com andar trôpego de canseira, com pés mal defendidos
por alpercatas desfiadas. Famílias inteiras davam na roça um duro danado. Saíam
antes do nascer do sol para retornar perto do escurecer, quase noite. Até
crianças trabalhavam. Melhor serviço pouco na lavoura do que muita confusão em
casa.
Nossa família foi exceção. Só o
pai compreendia que meninos deviam estudar. Os tempos eram outros. Ou, na
época, a pobreza se espalhava por todo o lado. Em casa, não tínhamos razões de
queixa. Ainda que fosse o pai o único envolvido de fato nos cuidados do café,
monocultura da região. Pela manhã, íamos à escola. No conforto de um ônibus de
linha. Nem sempre sentados, porque, em certos dias, ele já vinha lotado de
Araçatuba. Nós lhe dávamos o nome da cidade onde, madrugada ainda, iniciava o
itinerário. Se tardava a aparecer, perguntávamos aflitos à moradora da casa
junto à estrada: “A Araçatuba já passou”? Nunca perdemos dia de aula. A
Araçatuba era única condução do horário. Cumpria o trajeto até São José do Rio
Preto. Em estrada de terra batida, do começo ao fim. De asfalto ninguém falava.
Estávamos nos alvores dos anos 50. Décadas depois, no Paraná, é que vim a
conhecer ônibus escolar. Ainda me pergunto como o pai, com o pobre salário de fiscal
de uma fazendola de café, pagava quatro passagens de ônibus por dia. Dois
filhos, ida e volta da cidadezinha retirada cinco quilômetros. Tínhamos também nossas
obrigações além da escola. Nem de longe, para dizer a verdade, como os meninos
de idade semelhante. Descarregar caminhões de palha de arroz ou de café, recolher
no pasto esterco de gado para achegar aos pés de café. Palha ou esterco, adubo
natural. Num período em que ninguém ouvira falar de empresas multinacionais poluidoras
da terra, da água e dos alimentos.
Gente dessa época arcava com
asperezas que hoje apenas o ouvir assusta. A alimentação era de uma frugalidade
completa. Nada fora do básico e tudo preparado em casa mesmo. Acontecia até de
se engolir qualquer bobagem, antes de dormir, para tapear a fome que o estômago
insistia em lembrar. Roupa nova só após anos de uso da outra. Remendos de cores
várias dificultavam o reconhecimento do tecido original. Muito moleque calçou
feliz seu primeiro sapato por volta dos quinze anos. Sem a menor ideia de marca.
Se o pisante não machucava os pés, já estava no lucro. Os dedões festejavam o
fato de se livrarem de topadas. Distância de alguns quilômetros era no pé mesmo.
Ninguém pensava em carro, moto ou bicicleta. Um cavalo, quando muito, vá lá.
Para levar a mãe com criança no colo. Os demais seguiam trotando. Como o
cachorro, que sempre havia um e sempre ia junto. As casas, se por fora eram
modestas, por dentro então, mostravam austeridade difícil de explicar aos
filhos de hoje. Nem adianta o esforço. Não conseguiriam compreender.
E, apesar de tudo, não se
reclamava da vida. Nem se maldizia a sorte. Certo fatalismo sertanejo, espécie
de “fazer o quê?” nascia com a gente. Ninguém esperava que as coisas caíssem
prontas do céu. Armava-se de coragem. Enfrentava privações e dores. E cultivava
a solidariedade, coisa hoje um tanto esquecida.
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