Tio
Vitoriano era dono de um carro de praça. Estávamos em 1951. Nenhum de nós tinha
ainda ouvido a palavra táxi. Pelas tantas, os parentes começaram a mostrar incomum
preocupação com o patriarca, o vô Rogelio, que o pai chamava de “meu sogro”.
Não Rogério, mas Rogelio, como se fala em espanhol. Por influência das muitas
famílias italianas do lugar, nos acostumamos a dizer “nona” e “nono”, em vez de
vó e vô. Que eu tivesse sabido, ele nunca saíra daquele sítio. Nem cuidara da
saúde. Aos 77 anos, obeso, como se descobriu que era diabético jamais entendi.
De que meios dispunham para o diagnóstico? Que laboratório tinha feito os
exames? Vai lá saber. Mas o nono tinha diabetes e a coisa era antiga. Os sintomas
não assustavam pela simples razão de que a família ignorava os riscos. Daí que
ele ia levando a vida possível a um diabético desinformado. Para se locomover –
dentro de casa apenas – apoiava-se a uma bengala. Vinha enxergando cada vez
menos. Idade, gordura, óculos de fundo de garrafa, nada impressionava. Ao
contrário. Conforme a ocasião, até divertia. Uma vez, cheguei a casa enquanto
ele dormia. Fui brincar com meu primo Ciro.
Não o saudei nem na hora do almoço. À mesa, ouvindo meu nome, forçou os olhos
sobre o meu vulto: “Ah, é o Orivaldo? Pensei que fosse um gato”. Todos rimos; ele,
inclusive. Para ver quanta ignorância sobre uma vida que caminhava para o fim.
Não
passou muito tempo, piorou de vez. Veio o médico. Recomendou sua remoção para
Rio Preto, único centro capaz de tratá-lo. Tio Vito morava em Fernandópolis;
tio Menegildo, em Jales. Ligação telefônica demorava um dia inteiro naquele
tempo. Foram avisados. Havia urgência em reunir os filhos. Como numa vigília, à
espera do pior. Tio Vito chegou no seu carro de praça. Um bem conservado Ford,
suponho, ou de outra marca, quem lembra? As portas abriam o necessário a
passageiros de compleição comum. Não sei se verdadeira ou falsa, a nós foi
passada a versão de que o nono, por excessivamente gordo, não passou na
abertura das portas do automóvel. Impossível embarcá-lo. Nem teria adiantado. A
situação era muito grave. Morreu ali mesmo, em casa. Naquela noite ou na
seguinte, não recordo.
Trinta
anos mais tarde, internei a mãe em hospital de Maringá. Exames vistos, o médico
me encarou, assustado: “Quer matar sua mãe? Ela chegou perto de um coma
diabético”. Sorte que o seu anjo da guarda era o plantonista do dia. Aí é que fui
saber que o diabetes é grave e pode-se herdá-lo. Passamos a cuidar. Acho que
bem, porque ela chegou aos 94 anos. Morreu lúcida, junto dos filhos, dos quais um
também é portador. Mas o mantemos vigiado por endócrino excelente e amigo.
Ainda
sinto dificuldade de superar a doce, mas perversa, atração do açúcar. Por que é
tão custoso trocar hábitos nascidos no colo materno? Quem, no passado, ensinou
nossas pobres mães a adoçar todo sólido ou líquido que nos levavam à boca? Vida
afora, acabamos ingerindo tanta porcaria gostosa, não pelo valor nutritivo, mas
pelo sabor agradável. Na minha lembrança, e na de muita gente, continua presente
a figura do saco de açúcar, lá na despensa, protegido das formigas, mas
franqueado às nossas incursões. Quantas vezes nos tornamos coadjuvantes da mãe
na confecção daqueles doces chavascados, mais primorosos para nós do que os
produzidos nas doçarias da rainha da Inglaterra! Delícias, sim, mas perigosas.
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