sábado, 24 de novembro de 2012

Eu desisto - por padre Orivaldo Robles


Afirmação até certo ponto ufanista assegura: “Eu sou brasileiro; não desisto nunca”. Tentei levá-la à prática. Foi quando apareceram as faixas de pedestres nas ruas (sinalização horizontal) e, ao lado, placas de advertência (sinalização vertical). Em país civilizado tais placas são dispensáveis. Basta a sinalização horizontal. Mas nós somos diferentes. Abracei a quixotesca tarefa de ajudar pessoas a atravessar a rua. Contribuiria para criar entre nós um clima urbano mais cortês. Do que, aliás, Maringá precisa. Tolo que sou e cabeçudo, ainda por cima, comecei a solitária campanha de levar à observância da faixa de pedestres. Andando a pé por onde não havia sinal luminoso, eu levantava um braço para indicar minha intenção de cruzar a rua, enquanto, com a outra mão, apontava as listras brancas no asfalto. Ocasiões houve em que motoristas educadamente me cederam a preferência. Noutras, a reação foi menos amigável. Dirigiram-me buzinadas raivosas. Ou me homenagearam com gentilezas do tipo “Quer morrer, seu louco?” ou “Está bêbado, f.d.p.”?  
Quando ao volante ou guidão de veículo motorizado, sentimo-nos donos do mundo. A cidade toma contornos de nosso quintal. Dela desfrutamos conforme nosso alvedrio. Admito que por descuido já invadi faixa de pedestres. Estou-me esforçando para não repetir. Procuro não esquecer que nascemos pedestres, não motorizados. Não é justo entregar a cidade aos carros tornando um inferno a vida das pessoas. Estas são anteriores a eles. Quem chegou primeiro tem direito assegurado.
Por algum tempo sustentei uma inútil disputa. Não contra moinhos de vento, mas contra bólidos motorizados capazes de levar à morte ou ferir com gravidade. Reconheço que me comportei ingenuamente. Não pretendo engrossar com meu nome a extensa lista de vítimas. Cansei. Venho honestamente depor as armas. Aceito a derrota. Sou brasileiro, mas eu desisto.
A gota d’água, que fez entornar o copo, foi vertida por bela e desconhecida jovem, semana passada, numa avenida binária. Ela vinha a uma distância de bons vinte metros. Quatro placas (uma de cada lado de ambas as vias) apontavam-lhe a faixa de pedestres. Pouco antes, dois avisos. Um tinha alertado: “50 km”. A seguir, outro: “Pare”. Ergui bem alto um pacote branco que tinha na mão e entrei na faixa. Julguei seguro. Tanto que um furgão se deteve. Impossível não me ver. A moça – não acredito que nos 50 km/h recomendados – não aliviou. Para não me ferir, teve que frear. Mas parou em cima da faixa; eu passei na beiradinha. Com a face rubra de susto e raiva, me repreendeu gritando: “O senhor não pode ir-se jogando na faixa. Uma hora, o senhor vai morrer por causa disso”. Foi o que falou, mas inconscientemente talvez pensasse outra coisa. Assim como: “Eu sou jovem, bonita, rica e dirijo um carro novo. Você é velho, feio, pobre e anda a pé. Eu sou mais importante do que você. Como ousa atrapalhar minha passagem”?
 Não me joguei, apenas passei sobre a faixa, que não é nenhuma Brastemp, mas ainda está visível no asfalto. Se bem que umas mãos de tinta não lhe fariam mal. E não custam nenhuma fortuna.
Desculpe, moça bonita. Você está certa. Pedestre tem mesmo que sempre dar a vez para os veículos. Dirija seu precioso carro como quiser. Para que encher sua elegante cabecinha com ridículas normas de trânsito, não é mesmo?     

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Padre Makiyama - por Padre Orivaldo Robles


Seu nome brasileiro era Pedro. Em verdade, chamava-se Watar. Mas para nós sempre foi o Makiyama. Nome japonês comum para alguém muito pouco comum.
Deus sabe de que forma se manifestou a vocação em sua vida. E como foi difícil realizá-la. Na adolescência teve a ideia de ser padre. Mas jesuíta, como São Francisco Xavier, missionário na Índia e no Japão. Só que precisava trabalhar na roça para ajudar a família. Levou tempo até entrar na Escola Apostólica de Nova Friburgo (RJ), onde os jesuítas começavam a preparação dos seus candidatos. A pouca base escolar do Norte do Paraná dificultou-lhe acompanhar o estudo puxado. Penosamente, seguiu até à Filosofia, em Belo Horizonte. Foi aconselhado, porém, a desistir. A se tornar religioso, mas irmão leigo.  Não concordou. Voltou ao Paraná.
Procurado, Dom Jaime o acolheu e encaminhou a Curitiba para os quatros anos da Teologia, etapa final da formação de padre. Foi nessa fase que se tornou companheiro de seminário, meu e do Almeida. Mais velho que nós uma década e pedrada, os estudos teológicos pesaram-lhe como duro fardo. Empenhava-se ao extremo. Carecia, porém, de melhor embasamento escolar, que a Colônia Esperança, em Arapongas, não lhe dera na infância, quando nem compreendia direito a língua portuguesa. Talvez tenha vindo daí seu costume da falar pouco. Mas ele não desistiu. Era um lutador.
O Almeida e eu nos pusemos à sua disposição para ajudá-lo naquilo de que precisasse. Passamos a estudar com ele, sobretudo em ocasião de provas, que preparávamos a três ou dois, ele sempre junto. Foi nossa contribuição acadêmica ao irmão de diocese. Venceu. Por toda a vida se mostraria agradecido. Muito além do nosso merecimento, se é que tivemos algum. Quantas pessoas o ouviram dizer que, sem nossa ajuda, não teria chegado a ser padre. Bondade dele.
Além de companheiro, no seminário atraía a admiração como esportista. Foi goleiro de postura garbosa e firme. Não atingiu a classe de um João Ukachenski, do seminário lazarista, que lembrava Lev Yashin, o “Aranha Negra” da União Soviética. Mas dava “pontes” de encher os olhos. Também nadava com perfeição. Já padre, nas férias ia com paroquianos à praia. Gostava de atravessar a nado a baía de Guaratuba. Quando se cansava, flutuava de costas refazendo as forças para novas braçadas. Uma ocasião, ao guarda-vidas que o alcançou pensando socorrê-lo, perguntou calmamente: “O senhor está bem”?
Já lá se vão quase 46 anos que o primeiro bispo de Maringá nos ordenou padres, a nós três, em celebração única, na frente da Catedral velha. Nós o provocávamos para arrancar-lhe alguma palavra. Senão, ele não abria a boca. Um anacoreta dos tempos modernos. Quando completou 80 anos, ofereceram-lhe uma festa. Nunca o vimos tão feliz. Fez um discurso de 15 minutos. Fato digno de registro.
Doutor Camargo foi sua última paróquia. Também seu mundo e sua família nestes 26 anos. Amou profundamente aquela gente e dela recebeu amor igual. Veio buscá-lo a irmã morte no dia 13 passado, à noite. Morreu como sempre vivera: em total pobreza, rico somente do amor de Deus e do carinho do seu povo. Tive ocasião de testemunhar, em Doutor Camargo, um espetáculo grandioso e triste: uma igreja repleta de pessoas que só rompiam o silêncio para rezar e cantar. Não pude olhar para elas. A maioria, suponho, estava como eu, com os olhos toldados por lágrimas. Desde o começo da missa até o instante em que, no cemitério, baixamos seu caixão à terra, que a todos nos vai receber.

sábado, 10 de novembro de 2012

Perigo doce - por padre Orivaldo Robles


Tio Vitoriano era dono de um carro de praça. Estávamos em 1951. Nenhum de nós tinha ainda ouvido a palavra táxi. Pelas tantas, os parentes começaram a mostrar incomum preocupação com o patriarca, o vô Rogelio, que o pai chamava de “meu sogro”. Não Rogério, mas Rogelio, como se fala em espanhol. Por influência das muitas famílias italianas do lugar, nos acostumamos a dizer “nona” e “nono”, em vez de vó e vô. Que eu tivesse sabido, ele nunca saíra daquele sítio. Nem cuidara da saúde. Aos 77 anos, obeso, como se descobriu que era diabético jamais entendi. De que meios dispunham para o diagnóstico? Que laboratório tinha feito os exames? Vai lá saber. Mas o nono tinha diabetes e a coisa era antiga. Os sintomas não assustavam pela simples razão de que a família ignorava os riscos. Daí que ele ia levando a vida possível a um diabético desinformado. Para se locomover – dentro de casa apenas – apoiava-se a uma bengala. Vinha enxergando cada vez menos. Idade, gordura, óculos de fundo de garrafa, nada impressionava. Ao contrário. Conforme a ocasião, até divertia. Uma vez, cheguei a casa enquanto ele dormia. Fui brincar com meu primo Ciro. Não o saudei nem na hora do almoço. À mesa, ouvindo meu nome, forçou os olhos sobre o meu vulto: “Ah, é o Orivaldo? Pensei que fosse um gato”. Todos rimos; ele, inclusive. Para ver quanta ignorância sobre uma vida que caminhava para o fim.
Não passou muito tempo, piorou de vez. Veio o médico. Recomendou sua remoção para Rio Preto, único centro capaz de tratá-lo. Tio Vito morava em Fernandópolis; tio Menegildo, em Jales. Ligação telefônica demorava um dia inteiro naquele tempo. Foram avisados. Havia urgência em reunir os filhos. Como numa vigília, à espera do pior. Tio Vito chegou no seu carro de praça. Um bem conservado Ford, suponho, ou de outra marca, quem lembra? As portas abriam o necessário a passageiros de compleição comum. Não sei se verdadeira ou falsa, a nós foi passada a versão de que o nono, por excessivamente gordo, não passou na abertura das portas do automóvel. Impossível embarcá-lo. Nem teria adiantado. A situação era muito grave. Morreu ali mesmo, em casa. Naquela noite ou na seguinte, não recordo.
Trinta anos mais tarde, internei a mãe em hospital de Maringá. Exames vistos, o médico me encarou, assustado: “Quer matar sua mãe? Ela chegou perto de um coma diabético”. Sorte que o seu anjo da guarda era o plantonista do dia. Aí é que fui saber que o diabetes é grave e pode-se herdá-lo. Passamos a cuidar. Acho que bem, porque ela chegou aos 94 anos. Morreu lúcida, junto dos filhos, dos quais um também é portador. Mas o mantemos vigiado por endócrino excelente e amigo.
Ainda sinto dificuldade de superar a doce, mas perversa, atração do açúcar. Por que é tão custoso trocar hábitos nascidos no colo materno? Quem, no passado, ensinou nossas pobres mães a adoçar todo sólido ou líquido que nos levavam à boca? Vida afora, acabamos ingerindo tanta porcaria gostosa, não pelo valor nutritivo, mas pelo sabor agradável. Na minha lembrança, e na de muita gente, continua presente a figura do saco de açúcar, lá na despensa, protegido das formigas, mas franqueado às nossas incursões. Quantas vezes nos tornamos coadjuvantes da mãe na confecção daqueles doces chavascados, mais primorosos para nós do que os produzidos nas doçarias da rainha da Inglaterra! Delícias, sim, mas perigosas.