sábado, 25 de maio de 2013

Para onde foi o silêncio? - por padre Orivaldo Robles

Outro dia, nos dois lados da calçada à minha frente, contei seis pessoas falando ao celular. Não olhei para trás. É provável que outras estivessem fazendo o mesmo. O leitor já deve ter visto alguém conversando na rua, mas não percebeu com quem. Fique tranquilo. Não é nenhum daqueles infelizes que conversam sozinhos. Pode ver que ele mantém um aparelhinho colado na orelha. Existem até adaptações que permitem falar deixando as mãos livres. Inventadas, quem sabe, por algum italiano, que gosta de conversar agitando os braços, feito um helicóptero.
Não sei qual a relação entre o número de habitantes e o de celulares. Acredito que seja de empate. Em média, um celular por habitante. Como o automóvel, o celular marca a vida contemporânea. Não adianta ficar bravo. Ambos vieram para ficar. Em qualquer cidade é provável que a parcela maior da população disponha de carro e de celular. Mais de um até. Para os veículos é um suplício garantir vaga de estacionamento ou garagem de prédio. Para os celulares, ao contrário, nenhuma restrição. Estão aí, de todos os modelos, tipos, cores e preços. Dotados ainda dos mais impensáveis recursos, que os transformam no mais avançado Bombril das famosas mil e uma utilidades. Celulares podem hoje ser usados até como telefones.
Que haverá de tão importante para a gente ficar falando o tempo todo? Faz dez, quinze anos, celular era luxo. Raríssimos homens – mulher, nem pensar – dispunham-se a andar com aquele tijolão. Preso à cintura, mais parecia o coldre de um revólver. Os tempos mudaram. Hoje, a criança nem sabe ainda falar direito e já exige o brinquedinho falante. Houve época em que falávamos menos, mas apreciávamos a vida bem mais. Desde cedo, respeitávamos como sagrado aquele clima de mistério em que o silêncio nos envolvia.
Das cenas de minha infância, uma, por volta dos cinco anos, me transporta à sela do cavalo, protegido pelo pai, em direção ao curral do Adolfo Moretti. Àquela hora, com um empregado, ele ordenhava o seu gado leiteiro. No pastinho da nossa casa, as três vacas, que o patrão houvera por bem trazer para nosso uso, tinham resolvido cortar juntas o fornecimento do leite que bebíamos. Essa pendenga durou meses. O pai resolveu o problema. Madrugada, às vezes com a lua minguante no céu, ele encilhava o cavalo e nos púnhamos na estradinha para buscar leite a três quilômetros de distância. Ainda me pergunto onde o pai aprendera o refrão que, às vezes, cantava: “É madrugada, / De longe eu vim. / Deixe a lua sossegada / E olhe para mim”. Era só o que ele conhecia da marchinha – vim saber mais tarde – que Almirante e Braguinha tinham feito para um carnaval, não sei de que ano. A lua alta no céu, com certeza, lhe refrescava a memória.

Eu trocava preciosos momentos de sono matinal pelo encanto daqueles instantes passados com ele. Quase não nos falávamos. Às vezes, eu fazia alguma pergunta. Ele respondia com calma. Bom era o calor do seu corpo, a me passar uma segurança que, bem mais tarde, fui sentir, sozinho, num lombo de cavalo. Talvez tenha nascido aí o gosto, depois praticado no seminário, de começar o dia em silêncio. Uma sabedoria milenar a nós legada, desde os primeiros séculos, pelo monarquismo cristão. Silêncio que as novas gerações desconhecem. No entanto, sem esse corajoso mergulho no interior de si mesmo, ser humano nenhum descobrirá o sentido da vida. Só o silêncio tem o dom de colocar-nos face a face com a Verdade.

sábado, 18 de maio de 2013

Que futuro haverá? - por padre Orivaldo Robles


Alguém se lembra do filme “O Dia Seguinte”? Produção norte-americana de 1983, feita originalmente para a TV, desenhava os efeitos de uma guerra nuclear entre União Soviética e Estados Unidos. Era ambientada para Lawrence, no Kansas, cidade escolhida por situar-se no centro do país. Pretendia mostrar que uma guerra nuclear iria afetar a vida de todos, não importando onde vivessem. Hoje, a bem da verdade, nada acontece que não se faça sentir no mundo inteiro. Desde Herbert Marshall McLuhan (1911-1980), é aceito que vivemos numa “aldeia global”. Pelo menos no que tange ao comportamento. Basta um maluco inventar alguma idiotice num canto qualquer onde o Judas perdeu as botas para, do outro lado do mundo, alguém achar bonito imitá-lo. A macaquice patrocinada pelos meios de comunicação de todos os calibres faz tempo que mandou a privacidade para as cucuias.
Cada “especialista” que beberica sua cerveja no bar apresenta um diagnóstico para as barbaridades dos noticiários. Simplista, como toda explicação emocional e rasa. Poucos aprofundam as razões. Os fatos, porém, são desaguadouros de inúmeros tributários, difíceis de identificar, cujas nascentes têm, quase sempre, origens distintas e distantes. Nunca se explicam por um único fator. Elementos vários contribuem para sua gênese.
Há dez anos, na revista Interprensa IP, o educador João Malheiro apontava algo a que não se dá atenção. Um componente muito em voga é a deficiente educação para o prazer. Pai, educador ou psicólogo pode afirmar quanto é difícil conduzir uma criança, lentamente, mas de forma segura, a sair do seu mundinho pessoal para se abrir ao outro. No entanto, sem essa conversão, “ela viverá sob o domínio do prazer sensível e identificará – o que é um dos maiores enganos deste início de século – felicidade com prazer”.  Se no princípio do milênio existia essa percepção, calcule-se agora.
Boa parte dos adolescentes de nossos dias identifica felicidade com dormir quando e quanto quiser, vestir roupa de grife, calçar tênis de marca, comer o que agrada e na hora que bem entender, participar das festinhas e baladas que aguentar, adquirir os mais descolados aparelhos eletrônicos do mercado, gastar sem limite no shopping, dispor do mais sofisticado celular ou smartphone (com os aplicativos que desejar e sem restrição de uso), andar em carrão importado e do ano, dispor de dinheiro sem controle de gasto... Para garoto(a)s desse feitio felicidade nada tem a ver com formação de caráter, educação, estudo, saúde, poupança, moradia, transporte, segurança, respeito aos outros, bem-estar da sociedade, futuro da comunidade ou do país. Desde que não falte um burro de carga para lhes satisfazer os caprichos, tudo será válido. Para ele(a)s conquistar a felicidade nada mais é do que seguir os impulsos de sua natureza voltada ao prazer e ao consumo imediatos.
Não há como não perceber que vai crescendo o número de pais que aceitam essa “filosofia de vida”. Recusam-se ao trabalho de orientar a conduta dos filhinhos mimados. Jamais se revestem da coragem de dizer “não”.  Convenceram-se de que os seus anjinhos sempre estão certos: aos pais não cabe tolher o desenvolvimento da personalidade deles. Princípios religiosos, morais, sociais, pessoais..., para quê?
Tudo bem. Mas como vai ser o amanhã (que já está sendo hoje)?

sábado, 11 de maio de 2013

Dia das mães - por padre Orivaldo Robles


Um colega meu de seminário, nos anos 60, durante as férias, tinha o costume de reunir em casa os irmãos menores para explicar-lhes passagens da Bíblia. Numa dessas ocasiões, contou-lhes a parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32). Ao final, quis saber se haviam entendido ou restava alguma dúvida. Na inocência dos seus cinco anos, a irmãzinha caçula surpreendeu-o com um grande problema: “E onde estava a mãe dele”? Para a pequena deve ter parecido estranho que figura tão importante como a mãe não tivesse lugar na história. A parábola fala do filho descabeçado; do mais velho, ciumento; do pai misericordioso; cita até os empregados – mas sobre a mãe, nenhuma palavra. Pode?
Deus deve ter inventado a mãe a partir das necessidades do filho pequeno. Ao menor desconforto, ele exige-lhe a presença. Dela, de mais ninguém. Vá o pai acudir, se a hora for de mamar no seio! Quando chegar o tempo da mamadeira, ele poderá intervir. Mas aí já o grude do nenê com a mãe será tão firme que nem formão afiado remove. Igualmente a ligação dela com seu bebê. Ela finge não olhar, simula despreocupação, mas está sempre vigiando, quando um colo alheio o abriga. Fêmea nenhuma sustenta com sua cria ligação tão intensa ou prolongada. Em qualquer tempo, cultura ou lugar do mundo. Não existe pessoa normal a quem não horrorize nem revolte o abandono de um recém-nascido por sua mãe. Com toda a razão. É o comportamento mais avesso à natureza. Até fêmea de bicho protege o filhote que pariu.
Escritores e poetas exaltam a mãe. Há quem ache exagero. Coelho Neto é malhado pelo último verso do soneto famoso “Ser mãe”. Não sendo mulher nem mãe, não teria ele como opinar sobre maternidade. Eu discordo. Entendo que aos poetas é dado intuir realidades que não conseguem experimentar, mas delas misteriosamente ficam sabendo. Por isso falam com acerto de vivências que não precisam necessariamente sentir. Parece-me suficiente a leitura atenta da última estrofe para reconhecer-lhe a exatidão. Está lá: “Ser mãe é andar chorando num sorriso. / Ser mãe é ter um mundo e não ter nada. / Ser mãe é padecer num paraíso”.
Alguém expressaria melhor a contradição que afeta o íntimo de uma mulher que se torna mãe? Primeiro, o anseio de ser criadora da vida. Depois, a alegria de se descobrir carregando um novo ser já em caminho. E junto, insegurança e receio, indisposições e incômodos do corpo que se vai, aos poucos, convertendo em outro. Alguns meses passados e não se reconhecerá mais como a mesma que até ali foi. Contudo, ainda que estranha a si mesma, invade-a uma nunca antes provada alegria, que lhe promete um futuro de luz, que não sabe como virá. Por último, o sonhado nascimento do filho chega recheado por temores, incertezas, dúvidas... Quando não, por sofrimentos e angústias, que jamais pensou pudessem existir. Na dura certeza de que tudo estará somente começando.
Mistério surpreendente. Logo se vê esquecida das amofinações que enfrenta. Ei-la já com saudade daquele tempo em que engendrou o filho que agora descansa em seu regaço. Coelho Neto captou a estranha síntese de dor e riso, que se instalam no coração da mãe. Só mesmo Deus, Senhor da vida e do heroísmo que a sustentam, conhece de que foi feita a mulher a quem chamamos com esse nome.
Que Ele abençoe a todas. Sempre. Não só no segundo domingo de maio. 

sábado, 4 de maio de 2013

Nossa violência de cada dia - por padre Orivaldo Robles


“Quando eu era criança pequena”, não lá em Barbacena, mas no Estado de São Paulo, ouvia contar maldades atribuídas a Dioguinho, Lino Catarino ou Aníbal Vieira, o Lampião paulista, que sobreviveram no ideário popular como desafiadores da lei e da ordem. Lei e ordem que, na sua época, não deviam ser grande coisa. No sertão de Rio Preto, Triângulo Mineiro ou Mato Grosso do Sul, no início do século passado, viver era quase ter a espada de Dâmocles sobre a cabeça. Pouca gente, muito mato, fazendas se abrindo, estradas e comunicações rudimentares... – o que não faltava eram arruaceiros e matadores. Claro que o povo exagera quando conta seus causos. Para Menotti del Picchia, “cada ‘valentão’ se multiplica, cataliza façanhas alheias, deforma-se sentimentalmente a tomar atitudes vingadoras de cavaleiro andante e a enriquecer-se com o halo quixotesco de façanhas inidentificáveis”. Nem sempre dá para separar a história da lenda. Contudo, é certo que houve homens ignorantes, violentos, para quem matar não produzia desconforto nem remorso. Julgavam-se acima do bem e do mal. Não conheciam outra lei senão a própria vontade, que impunham à força.
Período difícil, de pouquíssima cultura e brutalidade às pampas. Por sorte, ficou lá atrás. Só antigos recordam peripécias que não presenciaram, mas ouviram de outros mais antigos ainda. “Que bom”, pensam, com certeza, os jovens de hoje. “Eu não me acostumaria com tanto atraso e violência. Ainda bem que nasci em outro tempo. Hoje não se vê mais isso”.
Será que não? E aquilo que observamos, todos os dias, bem diante do nariz? Não digo lá nos grotões inalcançados pelo progresso, mas nos centros que acreditamos desenvolvidos. Não é justamente nas grandes cidades, com mais numerosos recursos à disposição, que acontecem os mais bárbaros crimes? Quem ia pensar que o ser humano fosse capaz das insânias que os noticiários relatam? Antigamente um crime grave permanecia durante décadas como exemplo acabado de horror. Não se repetia. Hoje, a toda hora se conhece delito mais torpe que o anterior. Alguém é capaz de prever aonde chegará a maldade humana? Que delito vamos conhecer mais pavoroso dos que os já noticiados?
Será que uma pessoa se crê segura numa cidade de porte médio? Nem precisa ser São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Salvador, Curitiba... Inclusive dentro de casa. Fora, na rua e à noite, nem pensar. Uma vez, no final dos anos 60, dois amigos e eu, que há muito não nos víamos, ficamos conversando num bar de São Paulo até às três da madrugada. Depois caminhamos tranquilamente, por ruas desertas, até ao apartamento deles. Hoje alguém arriscaria fazer isso?
Os valentões do passado eram poucos e facilmente identificáveis. Praticavam barbaridades quando bêbados ou para mostrar valentia. Seu código de ética bandida não admitia ataque a mulher, idoso ou criança. Sua maldade ia até certo limite. Agora, bandidos encontram-se aos milhares. De todas as idades, aparências e origens. Nem a pior brutalidade os acalma. Até onde vai a sanha de um delinquente com uma arma na mão?
É esse o tal progresso, a tão celebrada modernidade a que chegamos? Que diabólico poder foi entregue aos donos das ruas para que mantenham os cidadãos dentro de casa tremendo de medo? Será que não existe remédio para essa ferida aberta na carne da nossa sociedade?