Memória de idoso é uma encrenca. Sem mais nem menos,
revolve lá no fundo e desentoca coisas que ninguém conhece ou recorda. É o caso
do exemplo a seguir. Sem esforço e com assiduidade, me vem à cabeça uma canção
encontrada num dos meus velhos LP nos quais, por falta de tempo ou por
comodismo, faz séculos que não mexo. Aos menos vividos acho bom esclarecer que
LP é abreviatura de “long playing”. Designa um antigo disco, dito de vinil, que
talvez tenham visto em figura. Nele eram gravadas normalmente doze melodias. Foi
o sucessor do disco de 78 r.p.m. (rotações por minuto). Por causa do tamanho,
também este, mas especialmente o outro, recebe hoje o apelido de bolachão. O LP
apareceu na fase anterior ao CD, ou “compact disc”. Entendo que para nossos
atuais garotos CD também não queira dizer nada. É coisa do tempo do onça.
A melodia a que me refiro começava com as palavras:
“Señora Santana, por qué llora el niño? Por una manzana, que se le ha perdido”.
Traduzindo: “Senhora Santa Ana, por que o menino está chorando? Por uma maçã
que ele perdeu”. Canção de ninar, comum no México e em Cuba, com variantes
diversas na letra, ora mais curta, ora mais extensa. Canta-se normalmente no
período natalino.
Criança é um serzinho especial, feito de meiguice e
mel, que amolece até os corações mais embrutecidos. Não há quem não se
enterneça com seu pranto. Não falo da manha ou birra, fáceis de identificar,
que mostram esperteza em levar os adultos no bico, quando o interesse é ganhar
colo ou satisfação de qualquer desejo. Refiro-me ao pranto genuíno, sentido,
que nasce lá no fundo e aflora em lágrimas, aos borbotões, correndo num
rostinho marcado pela tristeza. Quem consegue manter-se indiferente a esse
quadro? Tenho para mim que o ornato de um rosto infantil haveria que ser o
sorriso. Só sorriso permanente e radioso. Estridente feito bica d’água batendo
em pedras. Choro de criança é desventura que nunca devia acontecer. É
infelicidade no estado puro, confissão da absoluta impotência de escapar das
garras de uma dor incompreendida e atroz. Em carinha de criança, lágrima teria
que ser anormalidade. Dor teria que ficar reservada para nós, adultos, como castigo
para os pecadores que somos. Nunca ferir quem ainda nem descobriu o que é
viver. Quem não aprendeu a andar com os próprios pezinhos. Nem é capaz de
explicar aquilo que sente.
Por qué llora el niño? Ah, por inúmeras razões.
Especialmente niño brasileiro. Chora de fome. De frio. De medo. De solidão e
abandono. De doença e dor. De tristeza. De ameaça à própria vida. Da incerteza
quanto ao futuro. Do terror que provoca a violência presente em cada esquina...
Ao observar o que, nestes dias, vem acontecendo
Brasil afora, a gente sente vontade de questionar: Que ocultas e seculares
dores a voz (não rouca, mas muito clara) das ruas está trazendo? Quantas
crianças mudas reclamam através dos jovens, que bradam alto em todos os
quadrantes do País? Milhões de queixas, engolidas pelos inocentes donos das
lágrimas que ninguém secou, vêm agora expressas pelos seus porta-vozes, nas
ruas.
Ninguém pode desprezar o clamor que sobe das ruas.
Manifestantes gritam com uma força que crianças não têm. Não deve passar em
branco a oportunidade que o Brasil inteiro tem de escutá-los.