sábado, 16 de novembro de 2013

Querido Gonzaguinha - por Padre Orivaldo Robles

Outro dia, me dei ao cuidado de conferir a letra de “O que é, o que é?”, imortal samba de Gonzaguinha, falecido há 22 anos (tudo isso já?) em acidente no Sudoeste do nosso Estado. Nunca o tinha feito. Que riqueza de inspiração! Ele bem que podia ter durado mais que os seus poucos 45 anos. Ainda estaria produzindo coisas belíssimas, de valor incontestável. Muito melhores que as tolices de pretensos compositores, que frequentemente nos obrigam a ouvir em altíssimo volume. Sem pedir licença, alguns “donos” das ruas enfiam essas porcarias em nossos ouvidos. Nós, pobres vítimas, que podemos fazer?
Há tempo, venho-me convencendo de que atravessamos a era da mediocridade feliz. Na minha pobríssima opinião – que ninguém pediu, eu sei, e a poucos interessa –, grande parcela da sociedade vai sendo tangida por uma crescente imbecilização feita de desprezo do belo, do bom e do verdadeiro. Aprecia-se tão só o que oferece desfrute imediato, satisfação no momento, ainda que com sacrifício de valores perenes. Importa é conseguir prazer, dinheiro, prestígio, fama, admiração..., numa palavra, gozar a vida. “Edamus et bibamus, cras enim moriemur” (“comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”) – eis a proposta do consumismo moderno, que de moderno nada tem. Os romanos a herdaram dos filósofos hedonistas gregos. Até o profeta Isaías a conhecia (Is 22, 13).
Recordo que, em garoto, no seminário de São José Rio Preto, o holandês padre Alcuíno Derks levou mais de um mês ajudando-nos a refletir, um pouquinho por dia, sobre o tema: Vale a pena viver. Seu português canhestro tornou-o motivo de piada nos nossos recreios. Longe de seus ouvidos, fazíamos chacota da frase “Vale a pena de (sic) viver não só para comer doces e bolas” (sic), repetida por ele como um mantra para nos convencer do valor da vida.
Muitos anos mais tarde, o gênio de Gonzaguinha veio proclamar a excelência da vida. Que é ela? “Doce ilusão, maravilha, sofrimento, alegria, lamento, um nada, uma gota, menos que um segundo, um divino mistério, o sopro do criador numa atitude repleta de amor”? Tudo isso e mais ainda.
Num passado que há muito se perdeu, lá no sertão, cunharam o dito “matar para ver o tombo”. Traduzia o desprezo pela vida. Eram tempos de ignorância, de profundo atraso. Ainda não tinha chegado a civilização. Quando aportasse lá o progresso, tudo seria diferente. Haveria mudança para melhor. A vida seria apreciada no seu devido valor.
Vieram estradas, escolas, carros, aviões, computadores, celulares, ferramentas de comunicação ultramodernas... Em vez de melhorar, parece que piorou. Assassino hoje nem quer saber como a vítima caiu. Matam-se crianças, mulheres, índios, mendigos, homossexuais. Armas que a gente só via no cinema estão na mão de crianças no meio da rua, de dia. Gente, e a vida?

Antes de ter ceifada a sua, querido Gonzaguinha, você conseguiu brindar-nos com um luminoso hino à sublimidade desse divino dom, que nada fizemos por merecer. Quando dele tomamos consciência, já o vínhamos desfrutando há anos. Muito obrigado por advertir-nos de que precisamos parar um tempinho, toda manhã e toda noite, para nos perguntar: “A vida, o que ela é? Que estou fazendo da minha? Como trato a dos que vivem ao meu lado”?  

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