sábado, 28 de dezembro de 2013

Ao Menino Jesus - por padre Orivaldo Robles

Antes do Natal, crianças escrevem cartinhas ao Papai Noel. Eu, que deixei longe minha infância, escrevo depois do Natal. Não para o Papai Noel, mas para o Menino do presépio. Vai para ele minha última mensagem do ano:
Querido Menino Jesus.
Não sei para você, mas para mim foi bom ter acabado o agito do Natal. Para falar a verdade, tamanho rebuliço já estava me cansando. Não que eu não reconheça o significado do seu nascimento entre nós. Quem sou eu, miserável pecador, para não me extasiar, agradecido, ante o mistério de Deus, que vem ao nosso encontro na doçura de uma criança? Que nos dá o próprio Filho feito humano igual a nós em tudo, menos no pecado?  Com a Igreja também rezo ao Pai nestes dias: “No momento em que vosso Filho assume nossa fraqueza, a natureza humana recebe uma incomparável dignidade: ao tornar-se Ele um de nós, nós nos tornamos eternos”. Não é disso que estou falando, você sabe. O Natal nunca deixará de ser fonte e garantia de salvação para toda a humanidade. Como então não vibrar de alegria nem fazer festa por causa dele?
Não é a festa que me aborrece, Menino Jesus; é a ideia que dela muitos fazem. Nada além de comida, bebida e caríssimos bens consumíveis. Você acompanhou o movimento do centro, nos dias de preparação para o Natal? No comércio, um atropelo de dar medo. Nas calçadas, gente trombando com gente. Até se pisando, por falta de espaço. Meu coração mole sofre pelas crianças que nunca entraram num shopping. Só conhecem lojas de artigos baratos, à altura do salário que os pais recebem. Muitas, nem isso.
No fim, para que essa correria? Pela irreprimível ilusão de comprar para si e para os seus um feliz Natal. Cá com meus botões, fiquei pensando: “Ah, não vai haver felicidade para todos. Mesmo com estoques reforçados, as lojas não vão dar conta. Vai sobrar gente sem felicidade. Quem chegou primeiro acaba comprando tudo”. Pra você ver, Menino, em que se transformou hoje a festa do seu nascimento.
Triste é perceber que, por diferentes que pareçam, as coisas não mudaram tanto assim. Possivelmente nem tenham mudado. Quando você nasceu, quem se importou com o casal pobre e desconhecido – a mulher muito jovem e grávida –, longe de casa, precisando de ajuda? Quem olhou para um bebê que, por falta de berço, a mãe se obrigou a acomodar nas cavidades da pedra de um estábulo de animais? Preocupar-se com esse tipo de gente? Imagine! Da mesma forma que naquela noite, em Belém, quem hoje mostra interesse pelo seu nascimento, Menino?  As pessoas têm a atenção voltada para shoppings e lojas de grife onde esperam adquirir a felicidade do Natal.
Penso nos pais e mães que se amarguram, quando o Natal vem chegando. Seu pobre coração se angustia. Não por sua causa, Menino. Por causa do outro, que ocupou o seu lugar. Ele expõe preciosidades que a indústria fabrica e o comércio vende. Só que não são para os pobres.

Apesar de simpático, o Papai Noel é incapaz daquilo que os anjos anunciaram naquela noite: glória a Deus e paz aos homens amados por Ele. Você, Menino Jesus, veio para mostrar que Deus ama a todos nós. Mas só os pobres conseguem admitir essa verdade. Quem tem o coração dominado pelo dinheiro não precisa de Deus. Nem da paz que você veio trazer.

sábado, 30 de novembro de 2013

Grandeza que vai acabando - por Padre Orivaldo Robles

Temos a mesma procedência; se não todos, quase todos. Viemos, em grande parte, de Minas ou do interior paulista. Se apreciamos uma generosa carne de porco, talvez o façamos não por elaborada preferência culinária, mas por lembrança do estilo de vida que aprendemos com nossos pais e avós. Na vida roceira em que fomos criados, matar porco era um ritual que envolvia toda a família. Por vezes, até algum vizinho, chamado a ajudar. Era trabalho que começava de manhã bem cedo. A gritaria do animal causava impressão ruim. A mãe tentava impedir que as crianças deixassem a cama para assistir. Se já estavam de pé, aconselhava a que se mantivessem afastados. Não era bom que presenciassem a violência que cabia ao pai executar. Nem deviam sentir pena do bicho. Quanto maior o dó que dele tivessem, tanto mais ele demoraria a morrer. Era a crendice aceita por todos. No fim, as recomendações mostravam-se inúteis. Que moleque ia perder um espetáculo daquele? Pouco depois, lá estavam todos chutando a bexiga do infeliz transformada em bola enchida pelo sopro num canudo de mamona e amarrada num barbante.
Naquele tempo, não se encontrava família que não observasse o ritual de enviar aos vizinhos um prato de carne do porco abatido. A dona da casa ordenava: “Leve para a Dona Benedita e fale que foi a mãe que mandou”. Explicação, a rigor, desnecessária. Logo cedo o berreiro avisava, a quilômetros de distância, que chegaria carne fresca para o almoço. Embora a carne fosse mesmo um subproduto. Porcos se criavam por causa da banha usada para cozinhar. Matava-se capado da ceva, mantido na engorda até criar toucinho de quatro dedos de altura no lombo. Carne de porco na nossa infância tinha um sabor que a gente deixou de sentir faz tempo. A vizinha recebia o presente, com a explicação pela frugalidade: “A mãe falou para não reparar que desta vez era um porquinho pequeno”. 
Sempre me impressionou esse curioso jeito de viver dos pobres. Sim, porque maior ou menor, todos tinham suas dificuldades. Contudo, em mesa nenhuma faltava o de comer. Generosidade era a grandeza de todos; partilha, o dever sagrado até de quem não tinha religião. Ninguém mesquinhava aos outros as coisas que possuía. Verduras da horta, leite das vacas, ovos das galinhas, frutas do pomar..., fosse o que fosse. Receber dinheiro por isso? Qualquer um teria vergonha até de pensar. Éramos vizinhos, não comerciantes. Não passava pela cabeça de ninguém fazer lucro com a precisão do outro. Se hoje eu tenho, amanhã posso muito bem não ter. Assim como hoje eu ajudo, amanhã, quem sabe, eu precise de ajuda.
Daí a estranheza que me causam pessoas estufadas de ganância, como tantas que se veem. Pessoas fissuradas por levar vantagem em tudo e a qualquer custo. Que ridicularizam princípios como vida comum, solidariedade, partilha, amizade, espirito de serviço, bondade de coração... Será que nossos velhos não nos souberam educar? Só nos transmitiram baboseiras? Transformaram-nos em pobres coitados, incapazes de descobrir as chances que a vida sempre oferece e que só os idiotas não aproveitam?

Às vezes, fico aturdido, confesso. Apesar de tudo, desejo e espero que Deus me deixe morrer como o tolo que, lá na roça, aprendi a ser.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O "bom" velhinho - por padre Orivaldo Robles

A senhora esperou-me atravessar a rua e me deteve: “Foi bom encontrá-lo. Nesta época do ano, lembro sempre seu ensinamento: que Natal é festa do Menino Jesus, não do Papai Noel. Tinha que lhe contar, sabe? Ano passado, levei meu sobrinho ao shopping. Queriam fazê-lo sentar-se no colo do Papai Noel. Ele se recusou. Muito firme, disse: ‘Natal é aniversário do Menino Jesus, não do Papai Noel’. Fiquei feliz de ver como ele aprendeu bem o que a gente ensina em casa”.
O período natalino volta com força e o velho gordo reaparece nas ruas, shoppings e lojas de toda a cidade. Com esse calorão mais forte a cada ano, é preciso coragem para envergar fardão vermelho, botas grossas, vasta barba e cabelos compridos. Com aquela cara de feliz, sorrindo para os pequenos. Às vezes um energúmeno resolve puxar-lhe a barba para conferir se é de verdade. Porque existe Papai Noel com barba verdadeira. Alguns a deixam crescer para compor uma fantasia mais realista. Imagino o calor que Papai Noel suporta em Araçatuba, Ilha Solteira ou Cuiabá.
Devo admitir que não alimento mais a ojeriza que, no passado, eu nutria pelo velho de uniforme vermelho. Consequência da idade, talvez. Com o passar dos anos, a gente vai se conformando com as limitações próprias e alheias. Esforço-me por compreender esses senhores rotundos, sorridentes, de barba branca, interessados em dar alegria às crianças nas portas das lojas. Estou certo de que preferem o turno da noite, quando a temperatura baixa e as luzes brilham. O calor do sol os maltrata e judia das crianças. Dá dó vê-las arrastadas pelos pais, chorando, nariz escorrendo, doidas para voltar para casa.    
  Nunca tive intimidade com Papai Noel. Criado na roça, atravessei minha infância inteira sem ele. Nem dei pela sua ausência. Os meninos à minha volta, pobres como eu, também o desconheciam. Éramos felizes à nossa moda. Garotos do sítio, tínhamos pai e mãe para cuidar de nós, dar-nos o necessário e nos ensinar como viver. Nossos brinquedos não eram comprados. Os de hoje nem existiam. Menos ainda esses modernos, cheios de nove horas, que já vêm brincados. Criança de hoje não brinca; aperta botões. Ganha umas geringonças que trazem prontas todas as possibilidades e recursos. Ela só precisa ligar. Quem brinca é a máquina. A criança fica assistindo.  
Na nossa infância não precisávamos, talvez, do Papai Noel. Dos pais, sim, nós precisávamos. Do pai para os meninos, da mãe para as meninas. Eram eles que fabricavam nossos brinquedos. E brincavam conosco. Hoje são as crianças que ensinam aos pais como funciona o brinquedo. Pai e mãe servem para dar dinheiro. E basta.
Sou mais condescendente com Papai Noel. Mas ele continua o mesmo intruso. O invasor de um espaço que não é seu. Natal celebra o nascimento de Jesus. Jesus é o grande presente dado por Deus à humanidade. Papai Noel não dá. Ele tira. Tirou o dono da festa e tomou o seu lugar.
Os shoppings do Brasil investem quase trezentos milhões em publicidade neste Natal. Para vender presentes e ganhar dinheiro. Ninguém pensa no Menino Jesus, que não sabe fazer propaganda. Quem manda no Natal é Papai Noel.

Estranho Natal o nosso, não? O aniversariante levou cartão vermelho. E um intruso virou o dono da festa. 

sábado, 16 de novembro de 2013

Querido Gonzaguinha - por Padre Orivaldo Robles

Outro dia, me dei ao cuidado de conferir a letra de “O que é, o que é?”, imortal samba de Gonzaguinha, falecido há 22 anos (tudo isso já?) em acidente no Sudoeste do nosso Estado. Nunca o tinha feito. Que riqueza de inspiração! Ele bem que podia ter durado mais que os seus poucos 45 anos. Ainda estaria produzindo coisas belíssimas, de valor incontestável. Muito melhores que as tolices de pretensos compositores, que frequentemente nos obrigam a ouvir em altíssimo volume. Sem pedir licença, alguns “donos” das ruas enfiam essas porcarias em nossos ouvidos. Nós, pobres vítimas, que podemos fazer?
Há tempo, venho-me convencendo de que atravessamos a era da mediocridade feliz. Na minha pobríssima opinião – que ninguém pediu, eu sei, e a poucos interessa –, grande parcela da sociedade vai sendo tangida por uma crescente imbecilização feita de desprezo do belo, do bom e do verdadeiro. Aprecia-se tão só o que oferece desfrute imediato, satisfação no momento, ainda que com sacrifício de valores perenes. Importa é conseguir prazer, dinheiro, prestígio, fama, admiração..., numa palavra, gozar a vida. “Edamus et bibamus, cras enim moriemur” (“comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”) – eis a proposta do consumismo moderno, que de moderno nada tem. Os romanos a herdaram dos filósofos hedonistas gregos. Até o profeta Isaías a conhecia (Is 22, 13).
Recordo que, em garoto, no seminário de São José Rio Preto, o holandês padre Alcuíno Derks levou mais de um mês ajudando-nos a refletir, um pouquinho por dia, sobre o tema: Vale a pena viver. Seu português canhestro tornou-o motivo de piada nos nossos recreios. Longe de seus ouvidos, fazíamos chacota da frase “Vale a pena de (sic) viver não só para comer doces e bolas” (sic), repetida por ele como um mantra para nos convencer do valor da vida.
Muitos anos mais tarde, o gênio de Gonzaguinha veio proclamar a excelência da vida. Que é ela? “Doce ilusão, maravilha, sofrimento, alegria, lamento, um nada, uma gota, menos que um segundo, um divino mistério, o sopro do criador numa atitude repleta de amor”? Tudo isso e mais ainda.
Num passado que há muito se perdeu, lá no sertão, cunharam o dito “matar para ver o tombo”. Traduzia o desprezo pela vida. Eram tempos de ignorância, de profundo atraso. Ainda não tinha chegado a civilização. Quando aportasse lá o progresso, tudo seria diferente. Haveria mudança para melhor. A vida seria apreciada no seu devido valor.
Vieram estradas, escolas, carros, aviões, computadores, celulares, ferramentas de comunicação ultramodernas... Em vez de melhorar, parece que piorou. Assassino hoje nem quer saber como a vítima caiu. Matam-se crianças, mulheres, índios, mendigos, homossexuais. Armas que a gente só via no cinema estão na mão de crianças no meio da rua, de dia. Gente, e a vida?

Antes de ter ceifada a sua, querido Gonzaguinha, você conseguiu brindar-nos com um luminoso hino à sublimidade desse divino dom, que nada fizemos por merecer. Quando dele tomamos consciência, já o vínhamos desfrutando há anos. Muito obrigado por advertir-nos de que precisamos parar um tempinho, toda manhã e toda noite, para nos perguntar: “A vida, o que ela é? Que estou fazendo da minha? Como trato a dos que vivem ao meu lado”?  

sábado, 9 de novembro de 2013

Ainda as mães meninas - por padre Orivaldo Robles

Perde-se nas trevas de um passado que ninguém conheceu ou lembra a época em que nossas avós se casavam com 12 ou 13 anos de idade. Aos 14, já carregavam nos braços o primeiro filho. Nem por isso elas deixavam de dar conta da casa, de cozinhar, lavar, passar, fazer sabão, criar galinhas, amassar pão... e uma infinidade de outras obrigações. Ninguém ouvira ainda falar sobre creche, babá, “baby-sitter”, essas coisas. Com muita sorte, a mãe adolescente, se tanto, recebia ajuda de uma criança pouco mais nova do que ela – irmã, prima ou vizinha – a quem, por instantes, confiava seu nenê. Contudo, o que arrumava, muitas vezes, era nova fonte de preocupação. Essa adulta de 14 anos passava a ter duas crianças sob seus cuidados.
 Passou o tempo. Os costumes mudaram. A vida hoje é diferente.
Quando nos procuram para tratar de casamento, os jovens andam por volta dos 30 anos. Vez por outra, a carinha quase infantil de uma noiva me confunde. Mas já completou 28, 30 ou um pouquinho mais. Acabou o casamento de adolescentes. Se aparece noiva de 16, 18 anos, a gente aconselha a refletir mais. A retardar uma decisão tão importante para si e para tantas pessoas que a amam.  
Pois não há de ver que neste final de outubro os jornais trouxeram uma notícia aterradora? Saiu, com todas as letras: “Brasil gasta R$ 7 bi com gravidez na adolescência”. É conclusão de estudo das Nações Unidas. Diz que o “Brasil conseguiria acumular R$ 7 bilhões a mais na arrecadação anual, se adolescentes adiassem a gravidez até depois dos 20 anos”.  Nos países em desenvolvimento, por dia (atenção, por dia!), 70 mil meninas abaixo dos 18 anos dão à luz. Dessas, 200 morrem por complicações da gravidez ou do parto.
Faz mais de 15 anos, escrevi sobre o assunto o texto “Mães meninas”. Se algo mudou foi, pelo que agora percebo, para pior. O problema não é só dos pais da garota. Afeta a sociedade por inteiro. A mesma sociedade que incentiva qualquer forma de prazer. Em especial o sexo desbragado, irresponsável.
 A sociedade admite exigências para jovem dirigir automóvel. Para abrir empresa. Para usar cartão de crédito. Para assinar escritura de propriedade. Para viajar desacompanhado (a) ao Exterior. Há leis para muitas coisas que os jovens gostam de praticar, mas para as quais não estão ainda preparados. Ninguém discorda. Afinal está em jogo o bem comum, que se sobrepõe ao interesse ou ao gosto pessoal.
Em se tratando, porém, do exercício da sexualidade, aí qualquer norma é taxada de censura. Obscurantismo medieval, destruição da liberdade. Pois as pessoas têm direito de fazer o que bem entenderem. Admitem-se (até se incentivam) práticas cujas consequências as vítimas carregarão por toda a vida. Mas que ninguém se meta: as pessoas são livres!
Só um exemplo: tolera-se qualquer tipo de entretenimento para nossos jovens. Até aqueles que fazem apologia dos mais baixos instintos. Tornaram-se comuns “festas” movidas por álcool e outras drogas além de “melodias” que convidam a desfrutar da mulher como de simples objeto de prazer. Aclamam-se as garotas que se expõem, que se oferecem. Os promotores do evento pouco estão se lixando para os frutos da “diversão” que organizam. Influenciáveis como são, o(a)s adolescentes tornam-se presas fáceis nas garras desses abutres.

Sobra para os pais consertar depois o estrago. Se conseguirem.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O escandaloso esbanjamento de eclesiásticos - por José Lisboa Moreira de Oliveira

Correu o mundo a notícia de que o Vaticano afastou do exercício do ministério episcopal o bispo Franz-Peter Tebartz-van da diocese de Limburg na Alemanha, por causa do seu esbanjamento ao construir sua residência. O bispo teria gasto 31 milhões de euros na construção de sua "modesta casinha” de pastor. Soma que convertida em reais, segundo a cotação do euro no dia em que comecei a escrever este artigo, seria igual a R$ 79.360.000,00.
A notícia causou impacto na grande mídia (sempre à procura de fofocas) e nas pessoas mais simples e honestas que ainda esperam dos ministros ordenados um testemunho de simplicidade e de pobreza, a exemplo de Jesus que "não tinha onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20). Porém, para observadores atentos, o luxo, a ostentação e o esbanjamento de muitos padres e bispos é uma constante. Se analisarmos cuidadosamente o caso do Brasil, vamos ver que, nas devidas proporções, muitos aqui não ficam longe do bispo alemão. A seguir alguns exemplos ilustrativos.
Há quase dez anos, quando eu era professor de teologia no Instituto de Teologia de Ilhéus (BA), visitei uma comunidade de periferia na cidade de Itabuna (BA). Lá me deparei com o caso de um seminarista diácono, meu aluno, que estava para ser ordenado presbítero. O seminarista havia exigido daquela comunidade pobre, como presente de ordenação, uma casula no valor de três mil reais. Valor esse exorbitante para a época e para as pessoas daquele bairro pobre de periferia. Tempos atrás um bispo auxiliar de uma grande arquidiocese, hoje arcebispo na região Sudeste do nosso país, costumava exibir publicamente seus esbanjamentos. Entre esses esbanjamentos estava o fato de que ele morava num condomínio de luxo da capital, cuja taxa de condomínio naquela ocasião era de dois mil reais. Outro bispo, de uma simples diocese do Centro-Oeste, esnobava nas reuniões da CNBB que havia gasto trezentos mil reais apenas com a construção e decoração do presbitério da nova catedral. Uma arquidiocese está para construir uma nova catedral, cujo orçamento ultrapassa os cem milhões de reais. Recentemente o bispo de uma diocese do Nordeste brasileiro, encravada no polígono da seca, decidiu construir um luxuoso seminário para seus seminaristas, fora da própria diocese, onde os mesmos estudam filosofia e teologia. Para pagar as dívidas da construção decretou que cada paróquia deveria contribuir com determinada quantia. Passei na ocasião por algumas dessas paróquias e pude perceber o sofrimento do povo que, além dos problemas angustiantes provocados pela seca, tinha que se virar para arrecadar a quantia exigida pelo bispo. Falando sinceramente, diante de todas essas extravagâncias praticadas num país pobre como o nosso, os gastos do bispo alemão não passa de simples "fichinha”.
O que causa estranheza é o fato de que tudo isso aconteça após a realização do Concílio Vaticano II, o qual pediu que os ministros da Igreja, especialmente os bispos e padres, primassem pela simplicidade e pela pobreza, seguindo o exemplo de Jesus (PO, 17). Causa mais surpresa ainda saber que os esbanjadores eclesiásticos são ministros relativamente jovens, formados após o Vaticano II. O bispo de Limburg, afastado pelo Vaticano, tem 53 anos. Isso revela que a formação nos seminários e a formação permanente não estão conseguindo ajudar os pastores a viverem segundo o modelo de Cristo Pastor.
No caso do Brasil, as pesquisas apontam que a maioria absoluta dos seminaristas é originária de famílias pobres da zona rural ou das periferias das grandes cidades. No atual momento há uma prevalência de seminaristas provenientes das periferias urbanas. E talvez aqui esteja o motivo da tendência ao esbanjamento, ao luxo e à ostentação. Por serem oriundos de situações de extrema pobreza, os candidatos tudo fazem para sair da situação de miséria. Isso é uma coisa até certo ponto normal. Qualquer ser humano que tenha passado por uma situação de privação, ao ter uma oportunidade de sair dela, fará isso normalmente. Os seminaristas não são exceção à regra.
O que se deve questionar é a incapacidade do processo formativo de educar esses candidatos para uma vida simples e pobre. Os seminários e a formação permanente deveriam ser capazes de contribuir para que o seminarista pobre permanecesse pobre, mesmo depois de padre. Deveria ser capaz de ajudar o seminarista a entender que antes ele era pobre porque o sistema social e econômico injusto o impedia de ter o necessário para viver dignamente. Agora, como seminarista ou como padre, ele será ou permanecerá pobre por opção vocacional: para seguir Jesus Cristo pobre, o qual, ao assumir a condição humana se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza (2Cor 8,9). A formação deveria ser capaz de ajudar o futuro ministro ordenado a não ter medo de permanecer pobre; de, por opção vocacional, voltar a passar por situações de privação vividas anteriormente.
Mas não é isso que vem acontecendo. A formação nos seminários aburguesa. Os seminaristas recebem tudo de graça, não precisam trabalhar para se manter. Têm à disposição deles casa, comida, roupa lavada, transporte, médico, remédio, estudos, livros etc. Em muitos seminários os seminaristas nem sequer colaboram com a limpeza dos pratos nos quais comem e da casa onde moram. São raros os seminários onde isso acontece. Conheço seminários onde os seminaristas, depois do almoço, dormem a tarde toda e nem sequer leem os textos indicados pelos seus professores. Isso aconteceu muitas vezes com alunos meus. Eles não precisam se preocupar, pois há funcionários pagos pela diocese para trabalhar para eles. Pagos por um povo de bobos e de ingênuos, o qual ainda acredita piamente que ele tem obrigação de sustentar a mordomia de certos seminaristas, padres e bispos. Enquanto isso, a dona Maria e o seu José, funcionários do seminário, não conseguem tratar a saúde dos filhos e, menos ainda, pagar uma faculdade para eles, pois o salário minguado que recebem da diocese não é suficiente.
A medida drástica tomada pelo Vaticano contra o bispo alemão foi necessária, mas convém ressaltar que isso não resolverá o problema. É preciso, com urgência, mexer na estrutura eclesial viciada. Estrutura essa que trata os ministros ordenados como verdadeiros "príncipes da Igreja”, os quais se acham no direito de exigir do povo que sustente suas mordomias. É preciso rever todo o processo formativo, tornando-o mais leve, menos custoso e menos aburguesado. Sem desprezar o princípio bíblico de que o evangelizador tem direito a um salário digno (Mt 10,10), a Igreja precisa educar seus ministros ordenados a, como o apóstolo Paulo, trabalharem com as próprias mãos para o próprio sustento (At 18,3; 1Cor 9,13-15) e a se contentarem com aquilo que a comunidade pode oferecer para a manutenção deles (Lc 10,7-8). Mas para se chegar a isso é fundamental romper com todo o esquema eclesiástico atual, pautado no amor ao dinheiro. Sem ruptura, continuaremos a pôr remendos e a colocar vinho novo em potes velhos (Mc 2,21-22). Os escândalos continuarão a acontecer, uma vez que "a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6,10).

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Blood Money - Aborto legalizado

 Europa Filmes e a Estação Luz Filmes lançam a partir de São Paulo, no próximo dia 5 de novembro, com uma série de avant premières, o documentário “Blood Money – Aborto Legalizado”, uma produção norte-americana independente, assinada pelo diretor David Kyle.
Após o lançamento em São Paulo, têm início roadshows de pré-estreias, incluindo o Rio de Janeiro (6), Goiânia (7), Brasília (8), Belém (9), Curitiba (11), Salvador (12), Recife (13) e Fortaleza (14). Nestas cidades, Kyle falará de sua primeira incursão no cinema com esse documentário, que está se tornando um cult pelo realismo e crueza com que trata o tema e pelas denúncias que faz.
O filme de 75’ entra em cartaz nos cinemas a partir de 15 de novembro. Segundo Luís Eduardo Girão, diretor da Estação Luz Filmes, que adquiriu os direitos de distribuição no Brasil, o filme “Blood Money – Aborto Legalizado”, pretende atrair o público brasileiro, pois disseca o tema, revelando a experiência prática em um país onde o aborto é legalizado há 40 anos. ”Apesar de mais de 70% da população brasileira serem contra a legalização do aborto, de acordo com os principais institutos de pesquisa do país, o tema gera polêmica, causa grande interesse e esclarece o assunto sob vários aspectos.
Por isso esperamos que provoque repercussão, levando ao amadurecimento deste necessário debate no Brasil, onde ainda teimamos em tratar o aborto com hipocrisia”, diz Girão. O documentário de Kyle trata do funcionamento legal desta indústria nos Estados Unidos, mostrando “de que forma as estruturas médicas disputam e tratam sua clientela, os métodos aplicados pelas clínicas para realização do aborto e o destino do lixo hospitalar, entre outros temas, de forma muito realista”, conta Girão.
O filme também faz denúncias como a prática da eugenia e do controle da natalidade por meio do aborto e trata aspectos científicos e psicológicos relacionados ao tema, como o momento exato em que o feto é considerado um ser humano e se há ou não sequelas para a mulher submetida a este procedimento.
“Blood Money – Aborto Legalizado” traz, ainda, depoimentos de médicos e outros profissionais da área, de pacientes, cientistas e da ativista de movimentos negros dos EUA, Alveda C. King, sobrinha do pacifista Martin Luther King, que também apresenta o documentário. Dra. Alveda é envolvida em discussões sobre o mecanismo de controle racial nos EUA – o maior número de abortos é realizado nas comunidades negras. Segundo o diretor da Estação Luz Filmes, o amplo esclarecimento que o documentário oferece foi o que motivou sua produtora a assinar contrato com Kyle para adquirir os direitos de distribuição no Brasil. “É a primeira vez que o cinema trata o assunto desta forma, tirando-o da invisibilidade em um momento em que a mídia brasileira começa a discutir o assunto com coragem e com a importância que merece. Acreditamos que vá atrair diversos segmentos sociais e pessoas sensíveis a essa questão, sejam elas contra ou a favor da legalização do aborto no Brasil”.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Horário de verão - por padre Orivaldo Robles

Estou correndo o risco de receber paulada dos que pensam de forma diferente. Não sou versado nas ciências que tratam do assunto. Ainda assim, me arrisco a palpitar sobre o horário de verão, já em vigor. “Livre pensar é só pensar”, dizia Millôr. Exerço o direito de reclamar à toa, o “jus sperneandi”.
Não gosto desse horário. Jamais gostei. E não sou o único. Ele coleciona inimigos, assim como defensores, não sei em que proporção. Na Câmara dos Deputados repousam três projetos de lei, à espera da chance de o mandarem todos sabem para onde. Sinal de que também o detestam pessoas bem mais importantes que este obscuro escriba.
Todo ano, no terceiro domingo de outubro, desce um pesado mal-estar sobre meu corpo que, há tempo, consumiu os anos radiosos da juventude. Confesso que a primeira semana é braba. Depois, pouco a pouco, a máquina se adapta. Assim mesmo, pegando só no tranco. E contando os dias que faltam para o terceiro domingo do fevereiro seguinte.
Ouvi falar que esse horário é bom para aposentados. Também para quem pega no batente às nove da manhã. Ou ainda para os que dão expediente à tarde. Não tenho como comprovar. Cada um sabe de si. Agora, para quem pula da cama às 5h45m, inclusive nos sábados e domingos, não tem graça nenhuma. A sensação que me traz é a de que estou sempre atrasado. Parece que sobram obrigações no fim do tempo disponível para cumpri-las. É só descuidar um tiquinho que o relógio, implacável, vem buzinar na minha cabeça avisando que é tarde. Que amanhã o dia começa antes das seis. Não sei como alguns foram inventar que os dias se tornam mais longos. Que se conseguiu grande lucro com a ideia de retardar artificialmente a hora do pôr-do-sol.
Andei lendo que nos países equatoriais e tropicais a luz solar é quase a mesma, o tempo todo. Não há grande diferença entre os vários períodos do ano. No Brasil a distinção entre as quatro estações é mínima. Sem consultar a folhinha, quem sabe dizer em qual estamos? Entre maio e agosto (ou até setembro) temos dez ou doze dias frios. Fora deles, os outros são bem parecidos. Em países como o nosso não há vantagem em observar horário de verão. Tanto que o Brasil é o único país equatorial do mundo que o adota hoje.
Parece discutível o argumento de que esse horário produz grande redução no consumo de eletricidade. Entre nós ele serve, mais que tudo, para garantir o funcionamento confiável do atual modelo energético. O governo visa afastar apagões que escurecem regiões imensas, uma vez que são interligadas. Ao retardar a ligação simultânea da iluminação de todas as cidades, consegue equilíbrio na distribuição do consumo em horário de pico, isto é, quando escurece.

Não entendo do assunto, mas tenho direito de pensar: com as colossais potencialidades de energia eólica e solar de que o Brasil dispõe, por que investir apenas (ou de forma quase exclusiva) na geração de eletricidade a partir da matriz hídrica? Tapando o ouvido à grita de gente séria e entendida, dirigentes do país parecem interessados só em explorar (ou degradar?) nossos fantásticos rios e seus ricos entornos. Ou seria sujeição à ganância de empreiteiras financiadoras de campanhas eletivas? É uma dúvida plausível. Perguntar não ofende, né?

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Honestidade - por padre Orivaldo Robles

Saiu em dezenas de publicações deste Brasil tão precisado de boas notícias. Deu até no Jornal Nacional. Prova de que o fato está fora dos padrões convencionais. É uma daquelas coisas que parecem impossíveis de acontecer por aqui. Que, contadas, as pessoas vão chamar de lorota. Mas não é. É pura verdade.
Aconteceu em Jales, cidade de 50.000 habitantes, no noroeste paulista, distante 590 km da capital do Estado. Quando de sua elevação a município, há mais de 60 anos, minha família morava lá. Na época, era apenas um montinho mal ajeitado de casas. Os moradores não iam além de poucos milhares. Ainda assim, porque seis vilarejos, espalhados em derredor, foram-lhe atribuídos como distritos a fim de assegurar população necessária ao seu novo status. Pois essa é a Jales, que, por esses dias, veio nos devolver a fé na pureza da raça humana, que ainda tem integridade, sim. Pelo menos, alguns dos seus representantes.
Deu-se que, ao lado de outro imbecil, um rapaz de 18 anos foi preso por ter assaltado um posto de combustíveis e uma farmácia. O pai, Dorivaldo Porfírio de Lima, servente de pedreiro, que sobrevive com pouco mais do que o salário mínimo e nem carteira assinada possui, procurou os donos dos estabelecimentos, com intenção de restituir a importância roubada. Assumiu a responsabilidade pela devolução dos 1500 reais correspondentes à parte do filho no duplo assalto. Esclareceu que, embora sua condição financeira não lhe permitisse quitar toda a dívida de uma só vez, estava disposto a saldá-la em dez parcelas. Como garantia, deixou assinadas notas promissórias correspondentes. Justificou: “Ninguém deve ficar no prejuízo por culpa do meu filho. Quando sair da cadeia, ele vai trabalhar para me pagar o que estou pagando em seu lugar”. O dono do posto mostrou surpresa: “Nunca vi isso em lugar nenhum. Muitos não pagam nem devendo, imagine quem não deve”.
A notícia levou-me a recordar outro senhor, morador da mesma Jales, lá nos anos da minha infância. Uma noite, “seu” Pascoal chegou a nossa casa trazendo pela orelha o filho Samuel. Obrigou-o a pedir desculpa ao pai pelo furto de algumas laranjas do nosso pomar. Samuel era colega meu e do Eraldo na escola e nas diversões infantis. Meu irmão e eu ficamos sem saber onde enfiar a cara. O pai argumentou com “seu” Pascoal que aquilo era traquinagem de criança. Mas com o homem não tinha acerto. Era intransigente sobre os valores éticos que impunha à família. Ainda lembro o fecho do episódio. No tribunal da nossa humilde sala, à luz bruxuleante da lamparina, “seu” Pascoal, rigoroso juiz, proferiu terrível sentença: “Prefiro um filho morto a um filho ladrão”. Pouco depois nos mudamos. Nunca mais vi nosso amigo Samuel. Nem dele tive notícia.
Mais de 60 anos separam os dois episódios. São dois pais cujos princípios pesam mais do que dinheiro, luxo, ostentação, prazer... Mais até do que a vida. Para eles, se falta honra, não existe vida. Apenas simulacro dela.
“Seu” Pascoal teve sorte de não viver em nossos confusos dias. Se agarrasse hoje o filho pela orelha, teria de se haver com o ECA, o Conselho Tutelar etc. – perigo que Dorivaldo não corre.

A lamentar que do naipe desses dois não sejam todos os homens e mulheres do Brasil. 

sábado, 10 de agosto de 2013

O Dom Jaime que conheci - por padre Orivaldo Robles

Com ele convivi 55 anos. Figura incrível que não lembro com tristeza. Dele, uma passagem dolorida e jocosa; outra séria. Ambas verídicas. Escrevi-as em 2006:
1. Primeiros anos da Diocese. Maringá não tinha água tratada. Dom Jaime apanhou terrível infecção intestinal, uma giardíase que o acompanhou por longos e sofridos anos. Para ele as visitas pastorais, que jamais deixou, passaram a ser um suplício. Perdeu a conta das vezes que, em capelas rurais onde estava crismando, ao necessitar de um banheiro, verificava que simplesmente não existia tal peça. Por desoladora experiência comprovou a triste verdade do que é relatado como anedota, mas pode bem ter acontecido. Lá no sertão baiano, segundo contam, ter-se-ia um bispo hospedado em casa de rico fazendeiro, senhor de muitas terras e gado, mas de cultura pouca e de hábitos rudimentares. Não vendo nos aposentos nenhum sinal de sanitários, delicadamente o bispo foi informar-se com o anfitrião. O fazendeiro, chamando-o fora, estendeu o braço e apontou: “Olhe, seu bispo, daqui até o Piauí o senhor use à vontade”. Por conta das humilhações sofridas, Dom Jaime desenvolveu verdadeira obsessão por banheiros nas residências dos padres. Sua casa atual, incluindo área de serviço e residência das irmãs, conta com “apenas” dezesseis. Quando lhe foi apresentada a planta da casa paroquial de Santa Maria Goretti, aos existentes ele mandou ajuntar outros três: a casa conta agora com sete sanitários. Diante da exigência do aumento do número de banheiros para a construção da futura casa paroquial de São Mateus Apóstolo, um dos membros da comissão estranhou: “Lá em casa tem sete pessoas e só um banheiro. Aqui, para um padre o senhor quer três.” Mas o bispo não arredou pé: “Ou constroem mais ou não autorizo a casa paroquial. Nem crio a paróquia” (“A Igreja que brotou da mata”, p. 223).
2. Antonio Facci, pioneiro de Maringá e escritor, observou, há não muito tempo, que Maringá se constitui em cidade diferente de todas as outras de igual porte. Não só pela exuberância de uma arborização que ainda preserva parte do verde da mata original. Não só pela pujança de seu comércio, que chegou a ostentar, faz algum tempo, o posto de segunda praça atacadista do Brasil, atrás apenas de São Paulo. Não só pelo número de universidades e cursos superiores, que hoje atraem estudantes do Brasil inteiro e de países vizinhos. Acima de tudo, Maringá é diferente porque, sessenta anos depois de nascida, mantém elevado nível de solidariedade, como acontecia entre os primeiros moradores. As dezenas de obras beneficentes, multiplicadas e visíveis por todos os cantos, refletem a marca de um sofrido começo, quando os habitantes daquela boca de mato cultivavam laços fortes de união, sob pena de sucumbirem às agruras do meio. Não se podia estiolar o espírito de família que os tornava não só unidos, mas responsáveis um pelo outro, e todos, pela cidade que era sua.

Em outros lugares esse calor de vida se perdeu. Não em Maringá. Por uma razão historicamente inegável, segundo Facci. Porque Maringá teve o privilégio de acolher um homem que lhe ensinou, pelo exemplo de anos seguidos, a abrir o coração para as necessidades do outro. Mais ainda: ele transmitiu uma lição que Maringá incorporou à sua experiência de vida: a lição de que o outro não é estranho, é irmão. Esse homem se chama Dom Jaime Luiz Coelho (id. p. 212).

sábado, 3 de agosto de 2013

O papa no Brasil - por padre Orivaldo Robles

Ainda por muito tempo se falará da visita do papa Francisco. Para os mais velhos ela lembrou a primeira visita de um papa ao Brasil. Foi a de João Paulo 2°, em 1980. Tudo era novidade então. A começar pelo beijo no solo do aeroporto, ao desembarcar, em 30 de junho. No espaço de 12 dias, ele percorreu 14 mil quilômetros e 13 cidades: Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Aparecida, Porto Alegre, Curitiba, Manaus, Recife, Salvador, Belém, Teresina e Fortaleza. Uma das mais longas de suas 207 viagens apostólicas, nos quase 27 anos de pontificado (1978-2005). Algumas foram curtas, para o interior da Itália. Assim mesmo, comparado aos predecessores, Karol Wojtyla viajou mais do que todos juntos, de São Pedro a João Paulo 1°. Nessa primeira viagem ao Brasil, aos 60 anos, esbanjava vigor de um atleta. Nascido e criado na Polônia, além de vida extremamente regrada, o tempo livre ele preenchia com a prática do alpinismo. Nenhuma surpresa, portanto, que exibisse um físico invejável. Numa dessas revistas de amenidades, que se folheiam em salas de espera de médico ou dentista, li, na época, declaração de uma socialite brasileira para quem ele seria um dos homens mais sexy do mundo. Que observação profunda, não?
Lá em casa, a primeira visita de um papa teve significado especial. Pouco antes, o pai sofrera um AVC. É uma doença chata, que também afeta o emocional, levando o paciente a chorar por qualquer motivo. Qualquer motivo, uma pinoia! Vá saber o que muda no íntimo do coitado. O pai sempre fora um leão diante de dificuldades. Agora, a todo o momento, enchia os olhos de lágrimas. Comendo ou bebendo, se, do canto da boca, lhe escorria comida ou bebida; se derrubava o garfo ou o copo, parava na hora e começava a chorar. Era uma humilhação sentir-se incapaz de atos rotineiros. Só com dificuldade entrava em automóvel ou alcançava o meio-fio da calçada. Eu tinha que lhe sustentar a perna, cuidando que não tropeçasse feito bêbado. 
Por isso, aquela a visita do papa lhe fez enorme bem. Foram 12 dias cheios de novidade e de intensa emoção. Ele passava diante da TV de manhã à noite. A Globo não mostrava outra coisa. Cobriu todos os passos do papa. De Marialva eu vinha ver o pai. Encontrava-o na salinha minúscula, sentado no sofá, de olhos fitos na TV. Lacrimejantes, quase sempre. Não conseguia ver o papa sem chorar. A mãe lhe dava, em vez de lenço, uma toalha de rosto.
Seu AVC não foi daqueles de aleijar. Ele recebeu bom atendimento médico. Além da terapia lacrimal da televisão. A seu modo, tudo funcionou. Menos de um ano depois, andou no caminhão Mercedes 1113 de um sobrinho. Sem ajuda de ninguém para subir ou descer.
Agora, na Jornada Mundial da Juventude, o papa Francisco fascinou a todos. Difícil comparar as duas visitas. Cada uma teve sua magia e sedução. O papa, por si, não muda ninguém. Nós é que precisamos mudar para uma vida de maior fraternidade.

Senti que o pai não estivesse ali na sala, na frente da TV. Estou certo de que, de novo, se desmancharia em lágrimas. Espanhol, não precisaria de tradução para os discursos feitos num castelhano de sotaque argentino. Como qualquer brasileiro, deixar-se-ia encantar por esse homem que, embora sendo o papa, demonstra a mesma simplicidade que um pobre lavrador, no sofá da sala, conversando diante da TV.

sábado, 20 de julho de 2013

O bom rabi e o cão - por padre Orivaldo Robles

Uma fábula oriental conta que, nos arredores de Jerusalém, várias pessoas distraíam-se a contemplar um cão morto, estirado no caminho. Mostravam nojo e desprezo, ao tempo em que emitiam opiniões sobre o motivo de o terem arrastado até ali. “Deve ter sido um daqueles cães vagabundos, que invadem quintais para roubar comida”, disse um. “Com esse pelo coberto de rabugem, bem se vê que foi um cão vadio, que nunca teve dono”, arriscou outro. Um terceiro emendou: “Vai ver, algum morador da redondeza o matou e abandonou-o aí para os corvos”. Essas e ideias de igual teor eram expostas em voz alta e sem disfarce. Foi quando se achegou um desconhecido. Seu rosto refletia luz invulgar, que atraía atenção e respeito. Estava claro que ouvira os comentários feitos. Lançou sobre o animal morto um olhar de piedade e arrematou com doçura: “Nenhuma pérola seria capaz de brilhar tanto como a brancura dos seus dentes”.
A admiração tomou conta até dos mais afastados. Voltaram-se todos para ele. E como outro grupo que, em diferente oportunidade, lhe tinha exigido a condenação de uma mulher surpreendida em adultério, cabisbaixos e envergonhados, um por um, começaram a retirar-se. Os mais velhos, na frente. Um jovem de cabeleira farta e barba eriçada arriscou o palpite: “Esse não será Jesus de Nazaré, o rabi de quem falam maravilhas? Quem, senão ele, veria qualidades até num cão morto”?
Conheço a fábula desde não sei quando. Na realidade, faz muito tempo. O texto apresenta, aqui ou ali, pequenas variantes. No entanto, é sempre o mesmo relato. Nunca lhe soube a origem até que, agora, ao pesquisar, vim saber que está no livro “Lendas do bom rabi”, de Malba Tahan, pseudônimo de Júlio César de Mello e Souza (1895-1974). Apaixonado por Matemática e pela cultura árabe, ele dignificou, como poucos, a carreira de professor, que exerceu durante a vida inteira.
Desculpe-me, inusitado leitor, andei divagando. A fábula vale pela sua moral. Não é fato verídico, porém aduz precioso ensinamento. Atual também.
No trânsito, nunca uma criança do veículo à sua frente lhe mostrou a língua? Calculo que você ficou sem graça. “Que eu fiz para merecer isso?”, deve ter-se perguntado. Ligue não, assim é nosso mundo. Sartre propôs que “o inferno são os outros”. Na sociedade agressiva e injusta em que vivemos, filhos são preparados para competir na vida adulta. Aprendem, desde cedo, a encarar os outros como adversários. Como concorrentes interessados em roubar aquela vaga na creche, no hospital, na universidade, no emprego, no trânsito...
“Quem é o meu próximo?” (Lc 10,29), pergunta-se no Evangelho. A sociedade atual não dá a mínima para a resposta do Mestre. Já tem a sua: “Próximo é o sujeito no qual devo pisar sempre. Ele não tem nenhuma qualidade boa. O próximo não presta”. Ele é a Geni da música do Chico Buarque. Ou pior.

É!... Perdemos na poeira do tempo aquilo que o bom rabi viveu e transmitiu. Para muitos a sua doutrina transformou-se num amontoado de conselhos para consolar perdedores. A História registra e admira os feitos dos que venceram. Dos senhores de povos e nações. Daqueles cujas conquistas se adubaram no ódio e na violência. A isso chamam civilização. Também dão o nome de progresso.

sábado, 13 de julho de 2013

O profeta e a cidade - por padre Orivaldo Robles

O profeta é um visionário. Seu olhar penetra o que a outros é inatingível. Ele colhe na intimidade com Deus o talento para ditos que encantam. É vizinho, senão gêmeo do poeta. Como este, transmite noções com um talento que embasbaca. À gente ignara ocorre, por vezes: “Como não pensei nisso”? Mas dom é dom: não se dá a quem quer. Nada se faz por merecê-lo. Quem o possui simplesmente o ganhou. Para desfrute não de proveito pessoal, mas aberto ao bem de todos.
No século 8° a. C., em anúncio dos tempos messiânicos, Isaías formulou uma proposta assombrosa. E, ao mesmo tempo, encantadora: “O lobo será hóspede do cordeiro, o leopardo vai se deitar ao lado do cabrito. O bezerro e o leãozinho pastarão juntos; uma criança pequena tangerá os dois. O urso e a vaca pastarão unidos, enquanto suas crias descansarão lado a lado. O leão comerá capim como o boi. O bebê vai brincar no covil da víbora; a criancinha enfiará a mão na toca da serpente” (Is 11,6-8). A quem não sensibiliza o lirismo da descrição? Que não deixa, ao mesmo tempo, de ser, em toda a essência e vigor, palavra de Deus. Instado a propor ao reino de Judá o projeto divino, reúne Isaías e harmoniza dons de profeta e poeta.
No final do livro, o texto de um terceiro profeta, distinto também do Dêutero-Isaías (Is 40 a 55), descortina o clima do retorno a Jerusalém, ao fim do exílio da Babilônia (587-538): “Alegrai-vos com Jerusalém e exultai com ela todos vós que a amais; tomai parte em seu júbilo todos vós que choráveis por ela. Assim podereis sugar o leite de seus seios acolhedores. Podereis sugar e vos deleitar em seus peitos generosos. Farei correr para ela a paz como um rio e a glória das nações como torrente transbordante. Sereis amamentados, carregados ao colo e acariciados sobre os joelhos. Como mãe, que acaricia o filho, assim vos consolarei. E sereis consolados em Jerusalém” (Is 66,10-13).
Jerusalém quer dizer morada da paz. No mais profundo anseio bíblico ela é vista como cidade da felicidade, da paz. Não da mera ausência de conflitos. Mas da harmonia e total bem-estar das pessoas. Esta é a Jerusalém anunciada pelo profeta. No fundo, a cidade pela qual ansiamos todos nós. Ninguém há que não sonhe com uma cidade que o amamente, carregue no colo, acaricie sobre os joelhos. Em qualquer idade, afirmamos nossa necessidade de colo. O regaço materno será, por toda a vida, o modelo cabal de felicidade a que nos transportam nossas lembranças.
Que privação acha o leitor que denunciavam os manifestantes do mês passado? Não por acaso, a imensa maioria se compunha de jovens. Expressavam o desejo de que sua cidade fosse morada da paz para todos. Da paz que assossega por inteiro o coração. Por isso, assim do nada, com só o recurso das redes sociais, fizeram ecoar seu grito por São Paulo e Rio. Não só: a partir daí, por cidades do Brasil inteiro. Do Rio Grande do Sul à Paraíba e Roraima. Preso na garganta eles traziam não o grito por uns poucos centavos da tarifa urbana, mas pela falta de saúde, escola, segurança, locomoção, trabalho, dignidade, infraestrutura, respeito, futuro... Pela necessidade de vencer a corrupção, a desigualdade social, a falta de oportunidades.

Agora, se fala dos oportunistas, caroneiros, aproveitadores... Dos diversionistas que defendem a própria pele e o próprio poder. Que, apesar deles, não se apague a justa aspiração por nossas Jerusaléns. Por nossas cidades da paz. Cidades nas quais vejamos respeitada a dignidade de todos os irmãos. Até da maioria, que não conhece como é a vida no andar de cima.

sábado, 6 de julho de 2013

Lições de futebol - por padre Orivaldo Robles

Sabe aquela propaganda do bancário que cresceu ao lado do amigo e, para cada etapa que cita, vai repetindo: “Ele, titular; eu, banco”? Fosse comigo, a frase seria: “Ele, titular; eu, gandula”. Nem banco seria. Futebol, devo admitir, nunca foi exatamente minha praia. Apesar de eu ter sido fominha por bola e jogar o mais que podia. Foi o único esporte que pratiquei. Mas, se tivesse cometido a burrice de tentá-lo profissionalmente, na certa morreria de fome. Em campo fui sempre ponta-direita. Daqueles antigos, que vestiam a camisa sete, carregavam a bola até à linha de fundo e cruzavam, na esperança de que aparecesse alguém na área para mandá-la às redes. Tive desempenho medíocre, reconheço. Marquei também gols importantes. Menos, porém, do que se contam nos dedos das mãos.
Como a maioria dos brasileiros, aprecio uma partida de futebol bem jogada.  Sobretudo da seleção brasileira. Só que não me deixo engambelar por manobras politiqueiras, que exploram a paixão do povo com o propósito de angariar simpatia e votos. Interesso-me pela peleja desportiva, pelo esforço dentro de campo, pela vitória honesta. Se por goleada, melhor ainda. Sou do tempo em que, nos jogos da seleção brasileira, a pergunta era de quanto tinha ganhado. Ela não perdia.
Reconhecendo, embora, os problemas de toda ordem que, nestes dias, assolam o País, não me pude furtar ao sabor da vitória, domingo passado, 30 de junho, sobre a seleção espanhola de tantas e merecidas glórias. A Copa das Confederações me deu enorme alegria. Eu vinha com a seleção “roja” atravessada na garganta. Queria que a final fosse Brasil x Espanha. Mas estava certo de que a Espanha venceria.
Eu, 47 milhões de espanhóis residentes na Espanha e todos os outros espalhados pelo mundo. Era quase impossível nossa equipe, reunida há pouco tempo, vencer uma potência dirigida há cinco anos pelo mesmo treinador e composta pelos melhores jogadores da Europa. Para eles deve ter sido muito duro engolir a derrota. Pior ainda, pelo placar elástico e pelo domínio brasileiro em campo.
Mas nada justifica patriotada. Nem desvalorização de conquista alheia. Como tentou jornalista espanhol, ao entrevistar o treinador e, em seguida, o goleiro da Espanha. Por duas vezes, ele insistiu em atribuir a derrota ao cansaço dos jogadores. Ao fato de, três dias antes, contra a Itália, terem sustentado uma partida extenuante, que se prolongou até ao tempo extra e às penalidades. Autênticos e elegantes, treinador e arqueiro reconheceram que os brasileiros tinham jogado melhor que os espanhóis. Simplesmente isso.
Esqueceu-se o repórter que, na 1ª fase, a Itália tivera adversários pedreira, como Brasil, México e Japão. Enquanto isso, a Espanha enfrentara Uruguai e as babas Nigéria e Taiti. Na final, em Salvador, a Itália jogou contra o Uruguai, sob o sol das treze horas. Teve nova prorrogação e nova disputa de penalidades. E venceu. Contra o Brasil, no Maracanã, a Espanha jogou os 90 minutos regulamentares, à noite e em temperatura bem mais amena. Quem experimentou maior cansaço?

Por que certas pessoas sentem dificuldade em admitir que outras – em idênticas ou até em piores condições – levem sobre elas uma justa vantagem? Será tão difícil suportar que outros nos superem em algum aspecto? Por que a ânsia de ser superior sempre e em tudo?  

sábado, 29 de junho de 2013

Por que criança chora? - por padre Orivaldo Robles

Memória de idoso é uma encrenca. Sem mais nem menos, revolve lá no fundo e desentoca coisas que ninguém conhece ou recorda. É o caso do exemplo a seguir. Sem esforço e com assiduidade, me vem à cabeça uma canção encontrada num dos meus velhos LP nos quais, por falta de tempo ou por comodismo, faz séculos que não mexo. Aos menos vividos acho bom esclarecer que LP é abreviatura de “long playing”. Designa um antigo disco, dito de vinil, que talvez tenham visto em figura. Nele eram gravadas normalmente doze melodias. Foi o sucessor do disco de 78 r.p.m. (rotações por minuto). Por causa do tamanho, também este, mas especialmente o outro, recebe hoje o apelido de bolachão. O LP apareceu na fase anterior ao CD, ou “compact disc”. Entendo que para nossos atuais garotos CD também não queira dizer nada. É coisa do tempo do onça.
A melodia a que me refiro começava com as palavras: “Señora Santana, por qué llora el niño? Por una manzana, que se le ha perdido”. Traduzindo: “Senhora Santa Ana, por que o menino está chorando? Por uma maçã que ele perdeu”. Canção de ninar, comum no México e em Cuba, com variantes diversas na letra, ora mais curta, ora mais extensa. Canta-se normalmente no período natalino.
Criança é um serzinho especial, feito de meiguice e mel, que amolece até os corações mais embrutecidos. Não há quem não se enterneça com seu pranto. Não falo da manha ou birra, fáceis de identificar, que mostram esperteza em levar os adultos no bico, quando o interesse é ganhar colo ou satisfação de qualquer desejo. Refiro-me ao pranto genuíno, sentido, que nasce lá no fundo e aflora em lágrimas, aos borbotões, correndo num rostinho marcado pela tristeza. Quem consegue manter-se indiferente a esse quadro? Tenho para mim que o ornato de um rosto infantil haveria que ser o sorriso. Só sorriso permanente e radioso. Estridente feito bica d’água batendo em pedras. Choro de criança é desventura que nunca devia acontecer. É infelicidade no estado puro, confissão da absoluta impotência de escapar das garras de uma dor incompreendida e atroz. Em carinha de criança, lágrima teria que ser anormalidade. Dor teria que ficar reservada para nós, adultos, como castigo para os pecadores que somos. Nunca ferir quem ainda nem descobriu o que é viver. Quem não aprendeu a andar com os próprios pezinhos. Nem é capaz de explicar aquilo que sente.
Por qué llora el niño? Ah, por inúmeras razões. Especialmente niño brasileiro. Chora de fome. De frio. De medo. De solidão e abandono. De doença e dor. De tristeza. De ameaça à própria vida. Da incerteza quanto ao futuro. Do terror que provoca a violência presente em cada esquina...
Ao observar o que, nestes dias, vem acontecendo Brasil afora, a gente sente vontade de questionar: Que ocultas e seculares dores a voz (não rouca, mas muito clara) das ruas está trazendo? Quantas crianças mudas reclamam através dos jovens, que bradam alto em todos os quadrantes do País? Milhões de queixas, engolidas pelos inocentes donos das lágrimas que ninguém secou, vêm agora expressas pelos seus porta-vozes, nas ruas.

Ninguém pode desprezar o clamor que sobe das ruas. Manifestantes gritam com uma força que crianças não têm. Não deve passar em branco a oportunidade que o Brasil inteiro tem de escutá-los. 

sábado, 22 de junho de 2013

Vem pra rua - por padre Orivaldo Robles

Terça-feira passada, dezessete e trinta, mais ou menos. Nariz pingando como torneira que não fecha, eu ia apressado à farmácia do canto da praça. Faz tempo, me deram um cartão da melhor idade. Melhor para quem? Para os laboratórios, com certeza. São os que lucram com nossas doenças. O cartão me dá pequeno desconto. Não posso desprezar; tomo uma batelada de remédios de uso contínuo.
Enquanto caminhava, eu ouvia o alto-falante convocando as pessoas para o início da manifestação. Lamentei a coriza e o mal-estar que sentia. Mais que isso, porém, lamentei não possuir a disposição de 1992, da caminhada pelo impeachment do presidente Collor. Naquela vez, saí às ruas no meio de uma multidão composta, em sua maioria, por adolescentes conhecidos como “caras pintadas”. Pintaram a minha também. Tempo bom. Não há setentão que não recorde com gosto a vida que levava há vinte anos. Desta vez, tomei direto o rumo de casa. Nas ruas, jovens risonhos – de novo, quase todos adolescentes – portavam cartazes pintados à mão. Riam e aprontavam todo o barulho que a hora e o lugar lhes permitiam.
Mais tarde, já em casa, um forte alarido de vozes invadiu minha sala. Que seria? Tentei desligar-me. Não consegui. O barulho não dava sinal de que ia parar. Larguei a nebulização que estava fazendo e me aproximei da janela. Onze andares abaixo, ocupando calçadas e o leito da rua, movia-se uma baita aglomeração de gente. Li, dia seguinte, que dez mil pessoas a compunham. Não sei quem contou. Não disponho de meios para conferir, então tenho que acreditar. Caminhavam ao som de apitos, de assobios, de buzinas dos veículos parados, de instrumentos de percussão e de vozes, que gritavam em comando: “Vem pra rua”! Visto do alto, era um bonito espetáculo. Assim, ao vivo, eu nunca tinha assistido. Permaneci encostado à janela pelo espaço de uma boa meia hora. Até que passaram todos, e os automóveis voltaram a se pôr em movimento.
Qual o motivo da grande manifestação? Não, por certo, só os vinte centavos de aumento na tarifa do transporte urbano. Isso foi a gota d’água. O povo já vinha, desde muito, com insuportável clamor entalado na garganta. Esperava apenas o momento de pôr para fora. Começando pela maior cidade do país, por todos os cantos, explodiu a indignação que, nos anos 80, Ulysses Guimarães chamara de “a voz rouca das ruas”. Rouca podia ser a voz dele, próximo dos 70 anos de idade. A das ruas era límpida e vibrante. Escutei-a sob a minha janela. Adolescentes, jovens e adultos davam, na verdade, um recado a todos os que detêm poder: “Cansamos de ser tratados como um bando de patetas. Basta de políticos corruptos e incompetentes. Parem de esbanjar o nosso dinheiro. De sucatear a Educação, a Saúde, a Infraestrutura, a Segurança, o Transporte... Exigimos um país decente. De vergonha na cara”. Com o ímpeto da idade, uma jovem do Rio de Janeiro depositou no cartaz a sua esperança: “Desculpe o transtorno. Estamos mudando o País”.

Há quem duvide. Quem veja nisso puro fogo de palha aceso por gente que sequer usa ônibus urbano ou trem de subúrbio. Quem sabe em que vai dar? Mas uma caminhada de mil quilômetros – ensina a sabedoria chinesa – começa pelo primeiro passo. Vai saber se não estamos assistindo ao despertar de um novo Brasil? De um Brasil disposto a se erguer do berço esplêndido? Brasil que cansou de ser um gigante deitado? 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Namorados - por padre Orivaldo Robles

Minha cidade, no interior paulista, ostenta na única praça uma estátua de Santo Antônio. Nenhuma novidade. Em Curitiba, na praça da Catedral, há uma estátua de Tiradentes. A da minha cidade foi doada por Durvalino Magrini e inaugurada, nos anos 50, perante um colosso de gente. Um frade franciscano português, convidado para o evento, em seu discurso, várias vezes, falou de Santo Antônio de Lisboa. Deixou-me confuso. O padroeiro do lugar era Santo Antônio de Pádua, único que até ali tinha ouvido. Só mais tarde vim saber que ele era natural de Lisboa. Morrera em Pádua, na Itália, daí a designação pela qual é conhecido. Mas experimente convencer um português a chamá-lo Santo Antônio de Pádua!
Trazida pelos colonizadores, sua devoção tornou-se, no Brasil, tão popular que mudou a data do Dia dos Namorados. Entre nós ninguém o celebra a 14 de fevereiro, dia de São Valentim, como fazem outros países. Dia dos Namorados aqui é 12 de junho, véspera de Santo Antônio. Por causa da sua fama de santo casamenteiro. Lendas variáveis apresentam-no como paladino do amor entre jovens que alimentam o desejo sincero de se casarem. Santo Antônio é o protetor dos namorados.
Se há no Brasil uma palavra que mudou inteiramente de sentido é namoro. O que ela quer dizer, hoje em dia, não recorda em nada o que significou há algum tempo. Pergunte a um jovem o que é “vela”. Ele se lembrará do cilindro de cera com um pavio que se acende para clarear; da peça do motor de combustão que produz fagulha; ainda da grande parte de uma embarcação tocada pelo vento. Conte-lhe que também pode significar pessoa em vigília, observador, sentinela. Ele achará estranho. Estranhará ainda mais se souber que os antigos usavam vela para cuidar do namoro dos filhos. Especialmente das filhas. Pais costumavam deixar o casal de namorados na sala. Mas não inteiramente sós. Escalavam uma criança – a vela – para fazer-lhes companhia. Conheciam a natureza humana. Para evitar possíveis dores de cabeça, levavam a sério a máxima, trazida pelos portugueses, suponho: “O homem é fogo; a mulher, estopa: quando se juntam vem o diabo e sopra”.
Como analisar pais que agiam assim? Eram antiquados? Ignorantes? Prefiro achar que fossem apenas de outra época. Viviam num mundo diferente. Faço uma comparação: Naquele tempo, a maior carroça não aguentava carga superior a 500 quilogramas. Cruzando hoje nossas estradas, uma carreta transporta 32 toneladas. Considerava-se estudado quem tinha concluído o curso primário. Agora, nem pós-doutorado assegura uma qualificação definitiva. O mundo em que vivemos está permanentemente aberto a mudanças e novas descobertas.
O passar dos anos trouxe alteração do sentido de muitas palavras. Não expressam mais a significância original com que foram criadas. Também transformou muitos costumes. Buscando uma tradução fiel, que se entende atualmente por “namorar”? Qual o exato significado que as pessoas dão a palavras como namoro e namorado(a)? E, por consequência, para que serve um Dia dos Namorados? Como celebrá-lo com toda a solenidade possível? Pela propaganda que bombardeia nossa mídia, muita gente não conseguirá pensar em nada diferente de um delicioso jantar a dois, seguido de uma ardente noite de sexo.

Depois há quem reclame que um casamento preparado desse jeito não vai muito longe. E podia?

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O pica-pau - por padre Orivaldo Robles

Numa dessas manhãs, no meio das poucas árvores da Praça da Catedral, ouvi pipilar um pica-pau. Um não; dois. Um piava, outro respondia. Corriam pela grama, alçavam voos curtos, subiam às copas das árvores. Um casal, sem dúvida, em busca de lugar para construir o ninho. Devem ter ido embora decepcionados. Não cresce ali mais nenhuma palmeira decente que mereça o furo do seu afiado bico. Nada parecido com a fartura de que dispunham seus ancestrais. Quem morou na roça recorda os coqueiros no meio do pasto, duros como ferro e altos como prédios. Os pica-paus os martelavam até perfurar um orifício redondo e fundo. Com uma capacidade fabulosa de escutar – ouvem larvas ou insetos movendo-se no interior do tronco – cavam o caminho até sua refeição, além de providenciar a maternidade onde nascerão seus descendentes. Para pôr ovos e criar filhotes, não sei de outro pássaro, tirante o joão-de-barro, capaz de construir uma casa tão segura.
Não sou ornitólogo, menos ainda especialista em pica-pau, mas arrisco pensar que a cada ninhada, ele procura outra árvore para escavar um buraco novo. Vale dizer, a cada temporada de choco, repete o mesmo trabalho. Previdente, por causa do vento e da chuva, rompe a cavidade de baixo para cima. E a coloca no ponto mais alto da árvore para se livrar dos predadores. Após cinco semanas, os filhotes estão em condição de abandonar o ninho. Se nenhum gambá, coruja ou gavião até ali os descobriu, o perigo maior terá passado.
Assim como entre os humanos, também entre os pássaros há os que se aproveitam do esforço alheio. Sem a mesma capacidade do pica-pau, no tempo de incubar, o casal de papagaios tira vantagem do ninho em desuso e nele deposita seus ovos. Não tem noção do perigo a que se expõe. Maus exemplares do bicho homem, que sempre existem, pregam no tronco da árvore ripas de madeira escalando-as, como degraus de escada, para tirar os filhotes. Arrebatados do ninho muito novos, poucos papagainhos conseguem sobreviver. Uma judiação.
Senti dó dos pica-paus da praça. Não faz muitas décadas, ali se estendia uma senhora mata. Um oceano ondulante de verdura e vida. Para onde alguém olhasse o que via era um universo impenetrável, habitat feliz de uma profusão de bichos. Árvores de diversos vigores e alturas ofereciam, a quantos pica-paus houvesse, condição de construir os ninhos que desejassem. Trisavós do casal da Praça da Catedral nadaram numa riqueza que não voltará a repetir-se. Não precisaram, como estes dois, mendigar um escasso tronco onde cavar um oco de quinta classe.
A floresta que cobria tudo por aqui passou às mãos do bicho homem. Civilizado, entenda-se. Que via como progresso a derrubada, o plantio, a colheita e a comercialização do produto. Para fazer dinheiro, comprar terra e, de novo, devastar, plantar, colher, vender e acumular.
Que coisa! Não mais de cem anos de civilização bastaram para secarmos cursos d’água, assorearmos riachos, poluirmos e represarmos rios, deitarmos abaixo a floresta, envenenarmos o solo, anarquizarmos o clima e empestearmos o ar que respiramos. Antes da chegada dos brancos, durante milênios, populações indígenas ocuparam esta terra, fizeram uso correto das suas riquezas e preservaram os seus recursos.

Mas o que civilizados iam aprender com índios, não é? Índio é selvagem; nada entende de progresso. 

sábado, 25 de maio de 2013

Para onde foi o silêncio? - por padre Orivaldo Robles

Outro dia, nos dois lados da calçada à minha frente, contei seis pessoas falando ao celular. Não olhei para trás. É provável que outras estivessem fazendo o mesmo. O leitor já deve ter visto alguém conversando na rua, mas não percebeu com quem. Fique tranquilo. Não é nenhum daqueles infelizes que conversam sozinhos. Pode ver que ele mantém um aparelhinho colado na orelha. Existem até adaptações que permitem falar deixando as mãos livres. Inventadas, quem sabe, por algum italiano, que gosta de conversar agitando os braços, feito um helicóptero.
Não sei qual a relação entre o número de habitantes e o de celulares. Acredito que seja de empate. Em média, um celular por habitante. Como o automóvel, o celular marca a vida contemporânea. Não adianta ficar bravo. Ambos vieram para ficar. Em qualquer cidade é provável que a parcela maior da população disponha de carro e de celular. Mais de um até. Para os veículos é um suplício garantir vaga de estacionamento ou garagem de prédio. Para os celulares, ao contrário, nenhuma restrição. Estão aí, de todos os modelos, tipos, cores e preços. Dotados ainda dos mais impensáveis recursos, que os transformam no mais avançado Bombril das famosas mil e uma utilidades. Celulares podem hoje ser usados até como telefones.
Que haverá de tão importante para a gente ficar falando o tempo todo? Faz dez, quinze anos, celular era luxo. Raríssimos homens – mulher, nem pensar – dispunham-se a andar com aquele tijolão. Preso à cintura, mais parecia o coldre de um revólver. Os tempos mudaram. Hoje, a criança nem sabe ainda falar direito e já exige o brinquedinho falante. Houve época em que falávamos menos, mas apreciávamos a vida bem mais. Desde cedo, respeitávamos como sagrado aquele clima de mistério em que o silêncio nos envolvia.
Das cenas de minha infância, uma, por volta dos cinco anos, me transporta à sela do cavalo, protegido pelo pai, em direção ao curral do Adolfo Moretti. Àquela hora, com um empregado, ele ordenhava o seu gado leiteiro. No pastinho da nossa casa, as três vacas, que o patrão houvera por bem trazer para nosso uso, tinham resolvido cortar juntas o fornecimento do leite que bebíamos. Essa pendenga durou meses. O pai resolveu o problema. Madrugada, às vezes com a lua minguante no céu, ele encilhava o cavalo e nos púnhamos na estradinha para buscar leite a três quilômetros de distância. Ainda me pergunto onde o pai aprendera o refrão que, às vezes, cantava: “É madrugada, / De longe eu vim. / Deixe a lua sossegada / E olhe para mim”. Era só o que ele conhecia da marchinha – vim saber mais tarde – que Almirante e Braguinha tinham feito para um carnaval, não sei de que ano. A lua alta no céu, com certeza, lhe refrescava a memória.

Eu trocava preciosos momentos de sono matinal pelo encanto daqueles instantes passados com ele. Quase não nos falávamos. Às vezes, eu fazia alguma pergunta. Ele respondia com calma. Bom era o calor do seu corpo, a me passar uma segurança que, bem mais tarde, fui sentir, sozinho, num lombo de cavalo. Talvez tenha nascido aí o gosto, depois praticado no seminário, de começar o dia em silêncio. Uma sabedoria milenar a nós legada, desde os primeiros séculos, pelo monarquismo cristão. Silêncio que as novas gerações desconhecem. No entanto, sem esse corajoso mergulho no interior de si mesmo, ser humano nenhum descobrirá o sentido da vida. Só o silêncio tem o dom de colocar-nos face a face com a Verdade.

sábado, 18 de maio de 2013

Que futuro haverá? - por padre Orivaldo Robles


Alguém se lembra do filme “O Dia Seguinte”? Produção norte-americana de 1983, feita originalmente para a TV, desenhava os efeitos de uma guerra nuclear entre União Soviética e Estados Unidos. Era ambientada para Lawrence, no Kansas, cidade escolhida por situar-se no centro do país. Pretendia mostrar que uma guerra nuclear iria afetar a vida de todos, não importando onde vivessem. Hoje, a bem da verdade, nada acontece que não se faça sentir no mundo inteiro. Desde Herbert Marshall McLuhan (1911-1980), é aceito que vivemos numa “aldeia global”. Pelo menos no que tange ao comportamento. Basta um maluco inventar alguma idiotice num canto qualquer onde o Judas perdeu as botas para, do outro lado do mundo, alguém achar bonito imitá-lo. A macaquice patrocinada pelos meios de comunicação de todos os calibres faz tempo que mandou a privacidade para as cucuias.
Cada “especialista” que beberica sua cerveja no bar apresenta um diagnóstico para as barbaridades dos noticiários. Simplista, como toda explicação emocional e rasa. Poucos aprofundam as razões. Os fatos, porém, são desaguadouros de inúmeros tributários, difíceis de identificar, cujas nascentes têm, quase sempre, origens distintas e distantes. Nunca se explicam por um único fator. Elementos vários contribuem para sua gênese.
Há dez anos, na revista Interprensa IP, o educador João Malheiro apontava algo a que não se dá atenção. Um componente muito em voga é a deficiente educação para o prazer. Pai, educador ou psicólogo pode afirmar quanto é difícil conduzir uma criança, lentamente, mas de forma segura, a sair do seu mundinho pessoal para se abrir ao outro. No entanto, sem essa conversão, “ela viverá sob o domínio do prazer sensível e identificará – o que é um dos maiores enganos deste início de século – felicidade com prazer”.  Se no princípio do milênio existia essa percepção, calcule-se agora.
Boa parte dos adolescentes de nossos dias identifica felicidade com dormir quando e quanto quiser, vestir roupa de grife, calçar tênis de marca, comer o que agrada e na hora que bem entender, participar das festinhas e baladas que aguentar, adquirir os mais descolados aparelhos eletrônicos do mercado, gastar sem limite no shopping, dispor do mais sofisticado celular ou smartphone (com os aplicativos que desejar e sem restrição de uso), andar em carrão importado e do ano, dispor de dinheiro sem controle de gasto... Para garoto(a)s desse feitio felicidade nada tem a ver com formação de caráter, educação, estudo, saúde, poupança, moradia, transporte, segurança, respeito aos outros, bem-estar da sociedade, futuro da comunidade ou do país. Desde que não falte um burro de carga para lhes satisfazer os caprichos, tudo será válido. Para ele(a)s conquistar a felicidade nada mais é do que seguir os impulsos de sua natureza voltada ao prazer e ao consumo imediatos.
Não há como não perceber que vai crescendo o número de pais que aceitam essa “filosofia de vida”. Recusam-se ao trabalho de orientar a conduta dos filhinhos mimados. Jamais se revestem da coragem de dizer “não”.  Convenceram-se de que os seus anjinhos sempre estão certos: aos pais não cabe tolher o desenvolvimento da personalidade deles. Princípios religiosos, morais, sociais, pessoais..., para quê?
Tudo bem. Mas como vai ser o amanhã (que já está sendo hoje)?